Enquanto o califado do Estado Islâmico (EI) está prestes a ser derrotado, em uma batalha que desde fevereiro tem feito desmoronar o último reduto do grupo terrorista, em Baghouz, no leste da Síria, países ocidentais passam por um dilema. O que fazer com cidadãos – a maioria americanos, britânicos e franceses – que saíram de seus países para se unir ao EI e agora estão presos na Síria.
Esses combatentes e suas famílias devem ser repatriados e julgados em seus países de origem, ou é mais seguro impedir o seu retorno?
O melhor argumento em favor da repatriação dos combatentes aos seus países de origem é que eles provavelmente são mais perigosos quando não voltam para casa, segundo David Malet, professor de Justiça, Direito e Criminologia na American University, em Washington. Sob as leis internacionais criadas desde o surgimento do EI, todos os países são obrigados a monitorar e processar seus cidadãos que se unem ao grupo. Aqueles que voltam para casa deveriam ser monitorados por agências de segurança nacionais, e a propaganda feita por eles em redes sociais deveria ser controlada.
“O número de pessoas que voltaram e que tentaram cometer atos de terrorismo tem sido extremamente baixo e quase todas as tentativas foram apenas ameaças de curto prazo”, disse Malet à Gazeta do Povo. “Temos visto desde os anos 1980 que aqueles que não voltam para casa se unem a grupos terroristas e de guerrilha em outros lugares, como o Osama Bin Laden”, pontuou.
Já o argumento daqueles que são contrários a permitir que os combatentes entrem é a incerteza. “Não sabemos quantos desses que dizem que cometeram um erro ainda são radicalizados. Até agora não tivemos problemas com repatriados que foram presos, mas alguns terroristas se radicalizam ainda mais na prisão e recrutam outros. Então com o grande número de membros do EI que podem ir para a prisão a situação pode ser diferente”, ressaltou Malet.
Faça o que eu digo...
Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, insistiu que os governos europeus recebessem centenas de cidadãos que foram capturados enquanto lutavam pelo Estado Islâmico.
“Os Estados Unidos estão pedindo que o Reino Unido, França, Alemanha e outros aliados europeus recebam de volta mais de 800 combatentes do EI que nós capturamos na Síria e os coloquem em julgamento. O Califado está prestes a cair. A alternativa não é boa, nós seríamos forçados a libertá-los...", disse Trump pelo Twitter em 17 de fevereiro.
Cinco dias depois, ele declarou que os Estados Unidos se recusam a fazer o mesmo no caso de uma mulher americana que foi casada com três combatentes do EI e que está agora sob custódia na Síria.
Hoda Muthana, 24 anos, nascida nos Estados Unidos, deixou a sua vida de universitária para se juntar ao EI na Síria, em 2014. Ela foi casada com três combatentes do grupo no país, e teve um filho com o segundo marido, que foi morto em batalha. Em dezembro, ela escapou do território controlado pelos militantes e se rendeu às forças curdas.
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Enquanto ela vivia no califado, disseminava propaganda do Estado Islâmico em redes sociais e clamava pela morte dos americanos. Em entrevista ao jornal britânico The Guardian, Muthana disse que sofreu lavagem cerebral e se arrepende da sua decisão. Ela quer voltar para os EUA para que seu filho possa crescer como um cidadão americano.
Apesar de Muthana insistir que não tem mais sentimentos radicais, muitos americanos acreditam que ela perdeu o direito à cidadania americana quando se juntou à organização inimiga. O caso dela ainda está sendo julgado. O presidente Trump ordenou que o secretário de Estado Mike Pompeo não permitisse a entrada da mulher no país e o passaporte dela foi revogado.
Noivas do Estado Islâmico
Yago Riedijk, holandês, e Shamima Begum, britânica, se casaram em 2015, dias depois de ela ter chegado a um território controlado pelo Estado Islâmico na Síria. Begum tinha 15 anos quando fugiu para ser uma “noiva do Estado Islâmico”, e Riedijk, 23. Ele se juntou ao EI em 2014.
Com a derrota iminente do califado e após dois de seus três filhos terem morrido, Begum, agora com 19 anos, diz que quer voltar ao Reino Unido com o seu filho. O ministro do Interior britânico, Sajid Javid, disse em fevereiro que atuaria para retirar a cidadania britânica da jovem, mas depois disse que não deixaria um indivíduo apátrida.
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Em entrevista à rede britânica BBC, Riedijk disse que quer trazer sua esposa e filho para a Holanda para que eles possam levar “uma vida muçulmana moderada”. No entanto, a Holanda pode não reconhecer a união deles, feita enquanto ela era menor de idade. Para complicar o pedido de visto de residência na Holanda por Begum, o ministro da Justiça holandês disse que mulheres e crianças afiliadas ao EI representam “uma ameaça potencial de longo prazo”, mesmo que eles não tenham sido treinados ou tenham participado de atos hostis.
“Eu não entendo como ela poderia ser uma ameaça. Tudo o que ela fez foi ficar dentro de casa por três anos”, disse o holandês à BBC.
Se voltar para a Holanda, Riedijk pode enfrentar seis anos de prisão. Ele está em um centro de detenção curdo, e sua esposa estava em um campo para refugiados na Síria mas há relatos de que ela já saiu de lá.
Órfãos do Estados Islâmico
A França é o país europeu que mais sofreu com o terrorismo inspirado pelo Estado Islâmico. Desde 2013, quase 250 pessoas foram mortas no país em nome dessa ideologia. Assim, a questão se torna ainda mais complicada para as autoridades francesas.
O presidente Emmanuel Macron defende que os militantes sejam julgados na Síria ou no Iraque, mas disse que pediria que a pena de morte (que é banida na França) fosse excluída nesses casos.
Já estão programados julgamentos no Iraque para 13 cidadãos franceses que lutaram pelo EI, segundo a CNN. Autoridades francesas estão planejando trazer cerca de 130 jihadistas de origem francesa de volta ao país para serem julgados.
O destino das crianças desses militantes é mais complicado. A França estima que 550 crianças, filhos de franceses, viveram nos territórios do EI desde 2014. Muitas das crianças que sobreviveram são órfãs.
A imprensa internacional relata o caso de uma francesa que fugiu para a Síria em 2014, aos 14 anos, após ser radicalizada por grupos na internet. Lá, ela se casou e teve um filho. A sua família acredita que a jovem e o marido tenham morrido em combate em 2017, e que o bebê tenha sobrevivido e esteja em um dos campos coordenados pelos curdos na Síria, com quase três anos.
A França está planejando a volta para casa dessa e de outras crianças. Enquanto isso, a avó do menino, que não teve o nome revelado, aguarda o seu retorno. “Eu não vou desistir, pela criança”, ela disse em entrevista ao canal americano CNN. “Eu peço a todos que apenas sejam humanos. Ele é uma criança pequena. Não devia estar lá. E ele é tudo o que me restou da minha filha.”
Pedras no caminho
Na opinião de Malet, trazer os combatentes de volta é uma ação estratégica. “Assim, os que cooperarem podem se tornar instrumentos de contra-terrorismo, e os que não cooperarem, pelo menos não estarão disponíveis para ajudar o EI em outros lugares pela Ásia e África em que o grupo se estabeleceu”.
Mas mesmo quando os governos têm a intenção de repatriar os militantes, eles são confrontados com espinhosas questões diplomáticas e de ordem prática.
Uma dessas questões é a negociação com os curdos. Muitos desses simpatizantes estão em prisões ou campos de refugiados no nordeste da Síria operados pelas Forças Democráticas da Síria, uma milícia dominada por curdos e apoiada pelos Estados Unidos. Mas essa milícia não é uma autoridade internacionalmente reconhecida, e essa negociação certamente desagradaria a Turquia, que teme o separatismo curdo dentro de suas fronteiras e não quer que outros países legitimem o grupo.
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Outro problema é como transferir essas pessoas pela Turquia. Como o país não reconhece as autoridades curdas, os governos não podem transferir esses cidadãos diretamente para a Turquia a partir das regiões sírias controladas pelos curdos. Mesmo com acompanhamento de diplomatas ou militares, haveria resistência da Turquia.
Outra rota possível para a saída do nordeste da Síria seria através do Iraque, mas esse transporte levanta outros problemas. Oficiais europeus dizem que as autoridades curdas na Síria e as autoridades curdas no Iraque não trabalham muito bem juntas, o que causaria problemas práticos. Além disso, o governo iraquiano provavelmente não vai ter interesse em cooperar com a entrada de milhares de pessoas potencialmente radicalizadas em suas fronteiras. Um complicador para essa solução é que o Iraque tem pena de morte, e a União Europeia, que proíbe a prática, tem regras rígidas sobre expor seus cidadãos a processos em países estrangeiros onde a pena capital seja uma punição possível.
Um dos temores entre os líderes europeus é o de que eles irão repatriar pessoas que representam uma ameaça de segurança, para depois descobrir que os promotores não têm evidências suficientes para condená-las e sentenciá-las à prisão. Fazer a distinção entre quem de fato lutou pelo Estado Islâmico e quem apenas estava lá pode ser difícil em muitos casos.
As autoridades curdas disseram que não têm os recursos para conduzir os julgamentos em seus campos. Alguns líderes europeus defendem a instalação de um tribunal internacional na Síria ou no Iraque. Nesse caso, qual legislação deveria ser usada? As punições dos Estados Unidos para a filiação ao EI são muito mais severas do que as da Bélgica, por exemplo, que impõe apenas uma sentença de cinco anos. E ainda haveria a questão de para onde levar as pessoas quando elas fossem condenadas ou liberadas.
“Alguns críticos dizem que os terroristas não merecem voltar para casa, mas não podemos tomar decisões de segurança nacional com base no ódio. Para mim, a questão é o que o resto de nós merece, e essa é a política que nos fará mais seguros”, acredita Malet.
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