Captura de tela de televisão mostra o candidato presidencial José Antonio Kast, derrotado por Gabriel Boric nas eleições de 2021| Foto: EFE/Esteban Garay
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Há um ano, o Chile acabava de inaugurar um governo de Frente Ampla (imitador do Podemos espanhol, partido de extrema-esquerda) e do Partido Comunista. Sua popularidade estava em alta, assim como a aprovação da Convenção que deveria redigir uma nova Constituição para substituir a atual, que se originou na época do General Pinochet, embora tenha passado por inúmeras reformas. Ambos proclamavam a quem quisesse ouvir que tinham vindo refundar o Chile; que tudo o que havia sido feito antes deles estava errado; que as fronteiras tinham de ser abertas a todos e que a sua posição era moralmente superior à representada pela velha política.

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A predominância da esquerda na Convenção Constitucional foi tão ampla que as propostas da direita foram completamente ignoradas. Com o passar do tempo alguns alarmes começaram a soar, mas também foram ignorados. Ao final, o país foi presenteado com um texto que misturava o feminismo de Judith Butler com o indigenismo de Evo Morales, enfeitado com um vasto catálogo de direitos.

Tente outra vez

O resultado do plebiscito que o aprovaria em setembro passado foi um balde de água fria para essa esquerda, porque 62% dos chilenos o rejeitaram: de norte a sul, nos setores ricos, médios e pobres, mas foi especialmente notório na região com maior presença indígena (73,8%): os indígenas não queriam uma constituição indígena.

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No entanto, a esquerda radical é difícil de convencer. O que tinha acontecido? Segundo eles, foi tudo culpa da grande imprensa, aliada do capitalismo, que enganou os eleitores: fake news, disseram. Atingido pela realidade, o presidente Gabriel Boric convocou socialistas de destaque para o governo, que vieram trazer certa contenção e, principalmente, experiência política.

Tiveram que recomeçar. A maioria das forças políticas chegaram a um acordo para fazer uma nova tentativa. Desta vez, porém, uma comissão de especialistas teria que produzir um texto que evitasse partir do zero. Além disso, eles concordaram com alguns conteúdos mínimos que devem orientar seu trabalho. No dia 7 de maio seriam eleitos os conselheiros constitucionais, que, dada a caótica experiência anterior, deveriam ser apenas cinquenta. O Partido Republicano (o equivalente chileno do Vox, partido espanhol de direita), que é a favor da manutenção da atual Constituição, não esteve presente neste acordo. Entre suas principais bandeiras de luta está o controle da imigração e a segurança cidadã. Seu líder é José Antonio Kast, candidato que perdeu para Boric no segundo turno da eleição presidencial de 2021.

Boric entalado

Apesar do reforço dos socialistas, a inexperiência dos governantes é notória e motivo permanente para o exercício do humor maldoso dos chilenos. O próprio presidente Boric faz gestos constantes para se mostrar diferente dos políticos tradicionais e próximo do povo, mas muitas vezes os resultados não são os esperados. Assim, por exemplo, por ocasião dessas eleições, ele viajou para Punta Arenas, no extremo sul do país. Com alma de criança, ele escalou um escorregador em forma de tubo na área de recreação infantil de uma praça, mas ao escorregar ficou entalado.

Esta anedota mostra sua situação política, porque neste plano ele também está em dificuldades. Por um lado, a ala mais radical de sua coalizão o pressiona a tomar medidas que reforcem a intervenção do Estado na economia e promovam propostas "progressistas" em relação às mulheres, à família, à imigração e à segurança. A influência exercida pelo pensamento de Foucault e outros autores sobre ele é enorme, e impossibilita que eles legitimem o exercício da força pública. Por outro lado, tenta-se a moderação, o cuidado com a estabilidade econômica e o fortalecimento da ordem pública. O resultado é um conjunto de decisões que um dia agradam os mais radicais e outro os moderados, o que dá a sensação de estar diante de um governo que não sabe para onde vai. Essa tensão pode ser resolvida? Impossível: Boric está entalado, assim como estava no escorregador. Sem essas duas almas, seu governo não pode viver; mas são tão díspares que não o deixam governar.

Para piorar, a crise migratória só piorou; o crime cresceu de forma alarmante; a economia passa por momentos difíceis; o desemprego aumenta; o narcotráfico tomou conta de bairros inteiros nas principais cidades e, na área de Araucanía, grupos terroristas praticam constantes atos de violência em nome de uma causa indígena que não coincide com as preocupações dos verdadeiros indígenas. Não é à toa que é o principal bastião eleitoral da direita.

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A direita, com poder de veto

Neste contexto, decorreu no passado domingo a eleição dos cinquenta conselheiros constitucionais. As urnas já anunciavam uma vitória da direita, mas desta vez a realidade superou todas as expectativas, pois obteve 56,5% dos votos, número inédito na história nacional. A maior surpresa, porém, foi dada pela nova correlação de forças dentro dela, pois o conservador Partido Republicano superou largamente a direita tradicional, aliás, dobrou o número de eleitos. Sua representação lhe permite vetar qualquer regulamentação e, se aderir à direita tradicional, poderá aprovar o que quiser sem consultar a opinião da esquerda.

Além disso, esta eleição significou o desaparecimento do centro político no novo cenário, pois nem a Democracia Cristã, nem os partidos com claro cunho social-democrata, nem os independentes conseguiram qualquer representante. A esquerda não alcançou nem um terço dos votos e nela o Partido Comunista (PC) foi o mais votado, o que coloca Boric em uma situação particularmente difícil. Felizmente para ele, os socialistas ganharam menos votos, mas mais assentos do que o PC.

A situação é paradoxal em vários aspectos. Em primeiro lugar, justamente o partido que se opôs à possibilidade de elaboração de uma nova Constituição terá a missão de liderar o processo que deverá substituir o atual texto constitucional. Se a nova carta fundamental for aprovada, Boric terá que assinar e entrar para a história por uma Constituição cujos termos podem ser ditados pela direita. Com razão, no discurso que fez após a derrota do último domingo, Gabriel Boric pediu aos republicanos "que não cometam o mesmo erro que nós". Os primeiros sinais que os dirigentes deste partido têm dado são moderados e é bem possível que as duas alas de direita tentem chegar a acordos amplos com as forças da esquerda moderada e conseguir uma Constituição que represente as diferentes sensibilidades políticas. Se assim for, poderá ser aprovado sem grandes dificuldades no plebiscito que acontecerá em 17 de dezembro, quando o Chile poderá encerrar o problema constitucional.

Implicações para a América Latina

Esses resultados levantam algumas questões importantes. A primeira aponta para a influência do caso chileno no resto da América Latina, que tem uma clara tendência à esquerda. Assim como o de Boric, o governo de Gustavo Petro tem demonstrado grande inexperiência e persiste numa atitude ainda mais arrogante. Na Argentina, o kirchnerismo vive sérias dificuldades, por isso não seria surpreendente se, pelo menos nesses três países, o cenário político mudasse radicalmente em poucos anos. O destino desta região parece ser que os governos devem entregar o poder às oposições quando seu mandato terminar. Tudo isso dá sinais de um descontentamento da população com a classe política.

Por fim, cabe perguntar se o Chile de repente se tornou conservador. Não parece ser exatamente assim. As pesquisas mostram um país onde a laicidade avançou muito, as pessoas estão cada vez mais individualistas e nas questões sociais pensam de forma muito diferente de dez anos atrás. É verdade que o programa republicano tem um claro viés conservador, que não esconde. Mas é bem possível que os motivos que levaram os chilenos a lhe darem tão amplo apoio tenham mais a ver com o medo da desordem do que com a adesão a certos princípios. Estas são as mesmas razões que hoje a aprovação da polícia está nas alturas, quando apenas dois anos atrás seu prestígio era mínimo.

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Soma-se a isso o fato de que, no contexto hispano-americano, o Chile sempre se destacou pelo apreço pela legalidade, a mesma que hoje é ameaçada pela imigração ilegal, criminalidade, narcotráfico e terrorismo em algumas áreas do país. Talvez Hobbes esteja por trás dessa escolha, com o papel que atribui ao medo como componente essencial da política. Ou talvez seja simplesmente Andrés Bello –o autor intelectual da estabilidade institucional chilena no século XIX–, e sua ideia de que só pode haver liberdade onde um governo é forte o suficiente para garantir o estado de direito que a torna possível.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
©2023 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.