Enquanto o mundo estava atento aos discursos do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e do ditador da Coreia do Norte, Kim Jong-un, após a cúpula de 12 de junho que colocou frente a frente os líderes das nações historicamente inimigas, uma hondurenha acompanhada de sua filha de dois anos, e de dezenas de outras pessoas, cumpria a travessia final para chegar em território americano. O rio Grande era desafio superado. As duas agora teriam que lidar com as autoridades da Patrulha da Fronteira, que já haviam identificado o grupo de imigrantes ilegais que descia das jangadas.
Enquanto as autoridades americanas revistavam os demais, a mulher aproveitou para amamentar sua filha, sem nenhuma privacidade, unicamente sob as luzes dos faróis dos veículos da patrulha. Quando chegou a sua vez de ser revistada, a filha teve que ser separada da mãe por alguns instantes. A situação desencadeou um choro desesperado da pequena menina que só queria estar no colo de sua mãe.
A cena, bem como a curta história das duas, foi retratada pelo fotógrafo da Getty Images, John Moore, que acompanhava a operação da Patrulha de Fronteira naquela noite. A fotografia da menina de apenas dois anos chorando durante a operação da patrulha de fronteira viralizou na internet ao comover o mundo pelo drama enfrentado não só por elas, mas por centenas de outras crianças que passaram pela mesma situação desde que a política de “tolerância zero” do governo Trump entrou em vigor em meados de maio e passou a separar centenas de famílias que tentavam entrar ilegalmente no país.
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Moore contou que as duas estavam viajando há cerca de um mês, o que fez o fotógrafo concluir que, antes de deixarem sua casa em Honduras (onde 61% da população vive na pobreza), elas provavelmente não sabiam que poderiam ser separadas caso fossem flagradas cruzando a fronteira ilegalmente. Em sua cabeça, ele calculava as chances da garota: segundo as novas políticas federais, ela seria tirada de sua mãe durante o processo e não se encontrariam novamente até que o caso tivesse passado pelos tribunais, e então provavelmente voltariam ao país de onde fugiram.
Elas embarcaram em uma van da patrulha de fronteira e Moore não soube o que exatamente ocorreu com elas. Ele queria ser otimista - acreditar que, por alguma razão, a garota não teria que passar semanas ou meses no estado de espírito que havia testemunhado por apenas alguns segundos.
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O drama dos brasileiros
Desde que a política de separação de famílias passou a ser adotada largamente pela administração Trump, o governo norte-americano colocou sob sua custódia mais de 2.300 crianças que atravessaram a fronteira com pais, familiares ou responsáveis. Enquanto os adultos iam para detenções federais da imigração, os menores de idade eram encaminhados para abrigos cada vez mais lotados.
Famílias brasileiras também passam por essa situação. Uma lista compilada pelo governo dos Estados Unidos e enviada a autoridades do Brasil mostra que, até sexta-feira da semana passada (15), pelo menos 49 crianças e adolescentes brasileiros estavam em abrigos para menores no país, separadas de seus responsáveis. Segundo a Folha de S. Paulo, as crianças que já foram identificadas e colocadas em contato com os pais têm entre 5 e 17 anos, e estão em oito abrigos diferentes espalhados pelos EUA, em estados tão diversos quanto Arizona, Califórnia e Nova York.
O governo brasileiro, por meio dos consulados nos EUA, tem acompanhado os casos e tentado reconectar as famílias - que, na grande maioria das vezes, desconhecem o paradeiro dos menores. Porém, grande parte dos imigrantes não tem advogado, porque não consegue pagar por um. Como estão detidos, a maioria acaba demorando semanas para localizar o(s) filho(s).
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A pressão pelo fim da separação das famílias de imigrantes ilegais se intensificou na segunda e terça-feira (19 e 20), quando até mesmo os aliados de Trump passaram a criticar a medida. Ela começou a ser adotada em larga escala a partir de maio, quando o procurador-geral dos EUA (cargo equivalente ao de ministro da Justiça no Brasil), Jeff Sessions, anunciou a política de tolerância zero. Ele ordenou que os procuradores na fronteira sul do país processassem todos os adultos que ilegalmente cruzassem a fronteira dos EUA, inclusive aqueles que estivessem com crianças, as quais seriam colocadas sob custódia do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA.
Foi o momento em que as faces do debate sobre imigração nos EUA passaram de ‘violentos membros de gangues de rua’ para ‘crianças jovens e desnorteadas isoladas por agentes federais em gaiolas de metal’. Democratas, alguns republicanos, lideranças políticas, religiosas e de outros países pediam a suspensão das separações.
Enquanto isso, Trump afirmava vigorosamente que nada poderia fazer para impedir que as crianças fossem separadas dos responsáveis com quem cruzaram a fronteira. Disse que uma ação efetiva para acabar com a situação dependeria do Congresso e que os democratas estariam travando a aprovação de uma reforma na lei de imigração que acabasse com a separação de famílias - mas que também poderia autorizar a construção do muro na fronteira com o México, uma das promessas de campanha do republicano.
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A preocupação do governo norte-americano é o que a Casa Branca chama de “sistema de imigração falho”. Devido a brechas legais, muitos estrangeiros que chegam às fronteiras do país são soltos após serem presos, o que, segundo o governo, acaba incentivando a imigração ilegal, inclusive a ação de traficantes de pessoas.
Essas falhas são, conforme apontado pela Casa Branca, o acordo conhecido como Flores Settlement - e as decisões judiciais que seguiram a partir dele - e a Lei de Reautorização da Proteção às Vítimas do Tráfico, de 2008. Para a administração Trump, ambas limitam a capacidade do governo de deter e extraditar prontamente muitas famílias e crianças que entraram ilegalmente no país desacompanhadas.
De acordo com o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, desde o início do ano fiscal de 2016 (em outubro de 2015) até abril de 2018, mais de 110.000 menores apreendidos cruzando a fronteira sozinhos (identificados pela sigla UAC) foram soltos no interior do país para aguardar julgamento. Entretanto, o governo norte-americano alega que aproximadamente 90% das ordens de remoção de UACs do país se dá porque eles não comparecem às audiências nos tribunais de imigração, permanecendo ilegalmente no país. Outro argumento é que gangues violentas como o MS-13 aproveitam o fluxo de UACs para os EUA para recrutar membros. Segundo a Casa Branca, mais de um terço dos 274 membros do MS-13 e afiliados presos na “Operação Matador”, iniciada em maio de 2017 na região de Nova York, entraram no país como UACs.
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É por esses motivos que Donald Trump defende uma nova lei de imigração, mais rígida. Ele considera que as legislações atuais sobre o tema são “ridículas”, “obsoletas” e “as piores e mais fracas do mundo”, como comentou tuítes publicados nesta semana. Mas a defesa de uma fronteira mais forte não justificava, segundo os seus críticos, a separação das centenas de famílias que estavam cruzando a fronteira ilegalmente. Até mesmo a primeira-dama, Melania Trump, que é imigrante, disse, no domingo passado (17), que “detesta ver crianças separadas de suas famílias”.
Melania, que nasceu na Eslovênia, teria deixado claro para o mandatário, já há algum tempo, que era necessário tomar medidas para reunir as famílias - fosse por meio de uma ação do presidente, fosse via Congresso. E isso, segundo a agência de notícias Associated Press, teria tido um papel importante para o que Trump faria a seguir.
O decreto de Trump
Em uma mudança repentina, o presidente assinou, na quarta-feira (20), uma ordem executiva que direciona a administração a fazer aquilo que até então ela dizia que não poderia fazer: manter os menores detidos junto com seus pais ou responsáveis enquanto os adultos aguardam seus julgamentos. O decreto de Trump não restringe a política de tolerância zero.
“Estamos assinando uma ordem executiva. É algo muito importante. Trata-se de manter as famílias juntas, ao mesmo tempo em que assegura que os Estados Unidos terão uma fronteira muito poderosa, muito forte”, disse o presidente.
Ele continuou: “Eu não gostei de ver as famílias sendo separadas. É um problema que já dura há muitos anos, como você sabe, através de muitas administrações”, disse Trump ao assinar a ordem executiva. Como lembrou o presidente, sua administração não foi pioneira em separar famílias de imigrantes na fronteira, mas, segundo a própria secretária de Segurança Interna, Kirstjen Nielsen, isso ocorria em menor escala.
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Conforme indica a seção quatro do decreto, o Departamento de Justiça deve dar prioridade às famílias no processos de deportação. Com isso, a administração espera que o processo de deportação das famílias seja mais célere - mas se isso não ocorrer, estas famílias podem ficar detidas por semanas, ou meses, como ocorre em alguns casos atualmente.
O problema é que, além de já ter sido alvo de muitas críticas em administrações anteriores, manter as crianças junto com os pais em centros de detenção para imigrantes pode ferir um acordo judicial de 1997, o “Flores Settlement” - que foi indicado pela administração como um motivo para não manter as crianças com seus pais ou responsáveis.
O que é o “Flores Settlement”
O decreto assinado por Trump determina as políticas para a detenção temporária de famílias que entram no país ilegalmente. Nele, pede que o acordo “Flores Settlement” seja modificado de maneira que permita a Secretaria de Segurança Interna manter as famílias juntas “durante toda a pendência de processos criminais por entrada imprópria ou qualquer remoção ou outro processo de imigração”.
O acordo judicial, de 1997, requer que o governo faça duas coisas, basicamente: alocar menores de idade com parentes próximos ou amigos da família “sem atraso desnecessário”, em vez de mantê-los sob custódia; e manter as crianças imigrantes que estão sob custódia nas “condições menos restritivas” possíveis.
Ele foi firmado depois que vários processos foram apresentados contra o governo americano nos anos 1980, devido à maneira que crianças desacompanhadas que entravam ilegalmente nos EUA eram tratadas. Um deles foi apresentado pela American Civil Liberties Union, em nome de Jenny Lisette Flores, uma salvadorenha de 15 anos que havia cruzado a fronteira ilegalmente para se encontrar com a tia, que já estava nos EUA.
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Segundo o processo, Flores e outros menores que estavam sob a custódia do governo federal tinham que dividir dormitórios com homens e mulheres que não eram seus parentes, além de serem revistados regularmente. Também consta que as autoridades americanas não liberaram a garota para que ficasse com a tia, porque deveria ser entregue a seus pais.
O caso chegou à suprema corte em 1993, mas a consequência real foi um decreto de consentimento, assinado em 1997 pelo então presidente Bill Clinton e pelos representantes de Flores. O documento estabeleceu os padrões para o processamento de menores desacompanhados sob custódia do governo norte-americano. Além de exigir que eles sejam encaminhados para seus parentes próximos o mais rápido possível e que, aqueles que permanecessem sob a custódia do governo deveriam ficar em locais menos restritivos possíveis, o acordo prevê que o governo federal atenda as necessidades básicas dos menores, providenciando (1) alimentos e água potável, (2) assistência médica em caso de emergências, (3) banheiros e pias, (4) controle de temperatura adequado e ventilação, (5) supervisão adequada para proteger os menores de outros, e (6) separação de adultos que não são parentes, sempre que possível.
Desde então, outras regras para a custódia de menores foram somando-se ao acordo de Flores, como a exigência de que as crianças podem ficar detidas por no máximo 20 dias. Em 2014, quando o número de famílias que tentavam entrar ilegalmente nos EUA aumentou exponencialmente, o presidente democrata Barack Obama passou a construir centros de detenção para as famílias, que lá permaneciam até o processo de extradição ser concluído. Entretanto, após uma decisão judicial baseada no acordo Flores, as crianças, mesmo que acompanhadas dos pais, não poderiam ficar presas por mais do que 20 dias - o mesmo que já acontecia com as que cruzavam a fronteira sozinhas. Porém, a corte não deu aos pais o direito de serem soltos.
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Com isso, o governo norte-americano, sob a administração de Obama, adotou a prática de libertar as famílias depois dos 20 dias - já que também havia pouco espaço nos centros de detenção de famílias. Este é um exemplo da prática de “pegar e soltar”, criticada por Trump. E ele não está disposto a fazer o mesmo.
Por isso, ao manter os filhos detidos juntos com os pais ou responsáveis por mais de 20 dias, o decreto do presidente provavelmente enfrentará questionamentos na justiça e criará novas incertezas, caso a demanda para que o acordo de Flores seja modificado não seja atendida pela corte federal americana. A mais urgente é, se a Justiça não autorizar que as crianças passem mais de 20 dias nesses centros, o que acontecerá com elas? Uma possibilidade é que sejam afastadas dos pais como já estava acontecendo. Outra, mais improvável neste momento, é que Trump recue da política de ‘tolerância zero’ e não prenda os familiares antes de seus casos serem analisado pela Justiça. Talvez, uma ação legislativa possa apresentar uma solução para o impasse que enfrenta o governo dos Estados Unidos.
Mas mesmo que o decreto de Trump venha a ser barrado pela justiça, o presidente dos Estados Unidos teve sucesso em mudar a opinião pública quanto à detenção de menores ilegais no país. Segundo afirmou Pratheepan Gulasekaram, professor de Direito da Universidade Santa Clara, na Califórnia, em entrevista ao Quartz, perto de separar famílias, encarcerá-los juntos pode parecer uma melhor opção ao problema.
“Por causa dos extremos do governo e do comportamento humano, estamos nos tornando insensíveis ao que oito anos atrás já era uma coisa horrível: prender famílias que estão procurando asilo nos EUA", disse ele à publicação americana.