Na íntegra

Confira o relatório da ONU sobre os casos de pedofilia da Igreja

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Tinha razão o porta-voz da Santa Sé, padre Federico Lombardi, quando, na quarta-feira, falou de "acusações ideológicas" no relatório da ONU a respeito dos abusos cometidos por padres. E tinha razão porque o relatório extrapolou e muito o seu escopo, não se limitando a criticar a Santa Sé pela maneira como teria lidado com o escândalo de pedofilia, mas sugerindo mudanças radicais na legislação e até mesmo no ensinamento católico.

A maior parte do documento de 16 páginas efetivamente trata da questão dos abusos. Mas aproveita que a Igreja Católica está colocada na defensiva para fazer exigências que vão muito além da mudança no modo de tratar os casos dos padres abusadores. Por exemplo, afirma que "o Comitê recomenda que a Santa Sé tome as medidas necessárias para retirar todas as suas reservas e garantir à Convenção [sobre os Direitos da Criança] precedência sobre leis e regulações internas" (parágrafo 12), recomendando ainda "que a Santa Sé faça uma revisão ampla de seu quadro normativo, particularmente o Direito Canônico, para garantir que esteja totalmente de acordo com a Convenção" (parágrafo 14). Bill Donohue, presidente da Catholic League norte-americana, comparou esse pedido a uma situação em que a ONU exigisse do Congresso dos Estados Unidos que só fizesse leis que estivessem de acordo com o que a ONU dissesse. Uma clara violação da soberania dos Estados.

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A ONU também se mostra incomodada com a doutrina católica sobre o homossexualismo. Sem citações específicas, menciona "afirmações passadas da Santa Sé que contribuem para a estigmatização social e violência contra" os homossexuais (parágrafo 25), ignorando que a Igreja Católica, embora não aprove o comportamento homossexual, condena a violência homofóbica. O relatório ainda pede que a Igreja reveja sua posição em relação ao aborto, por colocar em risco a vida e a saúde de garotas grávidas (parágrafo 55), evocando um caso ocorrido no Brasil, em 2009, quando o então arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, deixou claro que os responsáveis por um aborto realizado em uma menina de 9 anos violentada pelo padrasto haviam sido automaticamente excomungados (o relatório, aliás, erra ao dizer que o arcebispo foi o responsável por decretar a pena). Não deixa de ser tristemente irônico que um comitê da ONU responsável por defender crianças peça ao Vaticano que aprove moralmente uma prática que consiste justamente na eliminação de crianças inocentes e indefesas.

O relatório ainda pede que a Santa Sé "supere todas as barreiras e tabus a respeito da sexualidade dos adolescentes" e passe a fornecer, por meio das escolas católicas, todo tipo de informação sobre contraceptivos (parágrafo 57) – a contracepção artificial é condenada pela Igreja. Mas a pergunta é: o que a condenação da Igreja ao comportamento homossexual, ao aborto e à contracepção artificial têm a ver com a pedofilia? Não era esse o assunto?

Não há desculpa para o escândalo dos padres pedófilos. Trata-se de pessoas formadas para pregar, defender e viver a virtude. A quem mais foi dado mais será cobrado, diz o Evangelho, e por isso um padre abusador nos choca tanto. Bispos encobriram sacerdotes pedófilos (embora o relatório da ONU confunda o segredo de confissão, algo que protege toda pessoa que se confessa, com um "código de silêncio" digno de mafiosos), e para muitos a reação do Vaticano veio tarde demais. Bento XVI, que governou a Igreja entre 2005 e 2013, adotou diversas medidas para combater o mal da pedofilia. Francisco seguirá o mesmo rumo.

Já há muitos anos a Santa Sé tem se mostrado uma pedra no sapato das Nações Unidas, especialmente nas conferências do Cairo e de Pequim (1994 e 1995, respectivamente), quando articulou países católicos e conquistou inclusive o apoio do mundo islâmico contra políticas antinatalistas ou que violavam a dignidade do ser humano. Agora a ONU dá o troco, usando o escândalo de pedofilia como pretexto para desferir um ataque mais amplo ao Vaticano.

Marcio Antonio Campos, blogueiro de ciência e religião da Gazeta do Povo

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