Na semana passada, a agência espacial russa, a Roscosmos, reiterou a intenção de deixar a Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês), e as datas fornecidas por Moscou causaram grande repercussão: a princípio, falou-se numa retirada “após 2024”, o que gerou interpretações na imprensa de uma saída em um futuro muito próximo.
Entretanto, em seguida a agência esclareceu que só vai se retirar do projeto quando sua estação espacial própria, a Ross, estiver com os primeiros módulos concluídos – o que deve acontecer por volta de 2028.
A ISS, administrada por Rússia, Estados Unidos, Japão, Canadá e 11 países da Europa, foi lançada em 1998 e se tornou uma espécie de símbolo do pós-Guerra Fria, por juntar especialistas de países que foram rivais durante décadas na corrida espacial para fazer pesquisas na área.
Dessa forma, comentários sobre a saída russa, quando as relações do país com o Ocidente estão no pior momento desde o fim da União Soviética devido à guerra na Ucrânia, vêm sendo encarados como outro efeito colateral do conflito.
Porém, Júnior Miranda, especialista em história espacial e autor do blog Homem do Espaço, apontou que a versão de que a Rússia anunciou sua saída da ISS apenas por conta das sanções que sofreu é uma “narrativa da mídia ocidental” e que o país já vem falando sobre sua retirada há mais de cinco anos por razões técnicas: a fadiga de material dos dois módulos principais do segmento russo, Zarya e Zvezda, construídos nas décadas de 1980 e 90.
“A Rússia se sentiu na necessidade de criar uma nova estação espacial, já pensada há vários anos, que permitiria que objetivos mais imediatos para a economia russa fossem alcançados, por exemplo: a observação do território russo a partir da órbita. Atualmente, com a ISS, apenas uma pequena parte é visível a partir da inclinação orbital da estação”, explicou Miranda.
A respeito de uma nova “Guerra Fria espacial”, o especialista afirmou que a rivalidade entre Estados Unidos e Rússia na área nunca acabou. Miranda apontou que os americanos se beneficiaram da experiência russa na área espacial, obtendo ganhos políticos, econômicos e tecnológicos, além de manter “sob controle” especialistas russos, para que não migrassem para rivais dos Estados Unidos, como Irã, Coreia do Norte e China.
Já os russos obtiveram aportes de dinheiro contínuos e conseguiram implementar uma estação espacial, uma meta difícil para o país no final dos anos 1990. Porém, nunca deixaram de ser vistos com “desconfiança”, afirmou Miranda.
“Não é que a corrida espacial vá renascer, ela sempre aconteceu de modo velado, e agora dependendo da condição que a Rússia tiver para implementar a Ross, é possível que haja uma comparação”, disse o especialista.
“O detalhe é que a Ross não ficará tripulada permanentemente, ela vai ser visitada periodicamente. O que pode haver de mais evidente em termos de uma corrida espacial, uma rivalidade, será entre o Ocidente e a China, que tem uma estação espacial tripulada de modo permanente já em funcionamento”, complementou Miranda, que destacou que o foco russo hoje está em satélites e não em voos espaciais tripulados.
O especialista acrescentou que a ISS não pode continuar sem a Rússia porque o sistema de propulsão, que mantém a estação em órbita, é relegado ao segmento russo.
“Poderia ser feito algo para contornar isso, se os americanos conseguirem outro meio de manutenção orbital, mas isso demandaria um bom tempo de desenvolvimento e adaptação. O mais provável é que se mantenha o acordo, o prazo de 2030 para desativação da estação, e que as coisas continuem de um modo bastante hipócrita até lá”, finalizou Miranda.
Corrida espacial
José Vagner Vital, brigadeiro do ar da reserva, coordenador do Comitê Aeroespacial do Sindicato Nacional das Indústrias de Materiais de Defesa (Simde) e diretor de inovação e negócios da empresa Saipher, concorda que a decisão russa de deixar a ISS não tem uma ligação direta com a guerra na Ucrânia.
“A ISS foi projetada para um determinado período. O primeiro módulo, que é russo, o de propulsão, foi projetado para 15 anos de vida útil e estão ‘esticando’. Os astronautas e cosmonautas já passam mais tempo procurando falhas para conserto do que fazendo os experimentos que são a razão de ser da estação”, justificou. “Os americanos procuraram adesão dos parceiros para estender [o funcionamento] até 2030. Os outros estão concordando, mas a Rússia já tinha planos de fazer a própria estação.”
Vital enfatizou que outro argumento é que a Rússia já esgotou os experimentos em que tinha interesse no nível de inclinação da ISS.
“Os russos querem uma inclinação maior, polar, para fazer experimentos num nível de radiação mais alto. Eles também gastam muito dinheiro com a ISS e não veem muito valor em manter missão tripulada, preferem manter um módulo automatizado que seria visitado para fazer ajustes, mas não ficaria o tempo todo [com tripulantes]. Isso permitiria fazer experimentos que hoje não são possíveis na ISS”, explicou o especialista.
“E também querem que a Ross seja uma espécie de espaço-porto, para fazer reparos em outras espaçonaves automatizadas que podem depois de 2030 serem acopladas, fazer reequipagem, ou mesmo virar um módulo que pode até apoiar missões para a Lua ou Marte”, acrescentou Vital, lembrando que os próprios americanos não estão prevendo uma estação internacional depois de 2030 – a ideia é que ela seja substituída por projetos privados.
“É natural eles [russos] procurarem uma alternativa. E não estão isolados, a China lançou a dela, a Índia vai lançar a sua”, explicou o especialista.
Nesse sentido, Vital acredita que não será possível falar numa nova “Guerra Fria espacial” no sentido tradicional Estados Unidos contra Rússia, já que investimentos para ocupação militar do espaço estão sendo feitos por diferentes países e essa corrida deve refletir disputas que já ocorrem em outros campos.
“Hoje há um ambiente multipolar, com muitas potências militares e econômicas surgindo, com menos controle americano, quando o Swift [sistema global de comunicação de transações bancárias] deixa de ser utilizado por uma parcela importante dos países. Não vai ser igual ao que foi até os anos 1980. O espaço é apenas mais um domínio de combate, que o Brasil não utiliza. Estamos completamente fora disso”, alertou.
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