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Se a população frear a islamização, as chances de entrar na União Europeia aumentam | Fernando Schatzmann
Se a população frear a islamização, as chances de entrar na União Europeia aumentam| Foto: Fernando Schatzmann

Entrevista

Daniel Dall’Agnol, cientista político e mestre em Cultura Política turca pela universidade de Yeditepe

Da Redação, com Thomas Rieger, especial para a Gazeta do Povo

Por mais que a maioria dos brasileiros acredite que a Turquia faça parte do bloco de países do Oriente Médio, o cientista político Daniel Dall’Agnol, que morou lá em 2004, acredita que o país é essencialmente ocidental – o que legitima as manifestações que o povo turco vem promovendo desde a semana passada.

Por que você acredita que a Turquia é mais ocidental que oriental?

Os turcos defendem valores similares aos dos países do Ocidente, como a democracia e o Estado laico. Ao longo da história, sempre que a manutenção de princípios como esses foi ameaçada, o povo foi às ruas para se manifestar. Tanto que aconteceram três golpes militares (em 1960, 1971 e 1980) que tiveram como objetivo restabelecer a ordem no país e preservar esses ideais e receberam o respaldo da população.

É possível dizer que os turcos estão habituados a revoluções?

Sim. Fazia tempo que uma não acontecia, mas isso não é novidade.

Se eles prezam tanto valores ocidentais, como permitiram que o governo de Erdogan chegasse a um terceiro mandato?

A Turquia sempre lutou para sobreviver às crises econômicas. A partir dos anos 2000, movimentos populistas começaram a ganhar popularidade com discursos que defendiam a prosperidade econômica – o que é o caso do Justiça e Desenvolvimento (AKP), partido do Erdogan. Ao ser eleito, em 2002, ele conseguiu inaugurar uma década de advento econômico que içou o país ao que ele é hoje. Mas, com o tempo, ele começou a usar o apoio que conquistou para legitimar seus atos.

Há a possibilidade de o Exército instaurar um novo golpe, como fez antes?

Acho difícil, porque o Erdogan, sabendo da história turca, tomou precauções e prendeu muitos líderes militares.

1923 foi ano em que a Turquia se tornou uma democracia. Desde 1987, o país é candidato a ingressar no bloco europeu.

Em meio às manifestações que ficaram conhecidas como "Primavera Árabe" e destronaram ditadores que detinham o poder há décadas em países da África e do Oriente Médio, a Turquia era vista como uma ilha de tranquilidade e de prosperidade econômica no mundo muçulmano. Candidato à entrada na União Europeia desde 1987, o "mais europeu dos países islâmicos" é governado desde 2002 pelo primeiro-ministro, Recep Tayyip Erdogan – elogiado por governos ocidentais – e não dava sinais de atrito entre o povo e o partido governista, o Justiça e Desenvolvimento (AKP).

INFOGRÁFICO: Veja onde fica a Turquia

Esse quadro se mostrou equivocado desde a semana passada. A brutalidade da polícia ao tentar expulsar manifestantes que queriam impedir a destruição de um parque para a instalação de um shopping em Istambul, cidade mais populosa da Turquia, serviu de estopim para que a população fosse às ruas das principais cidades do país gritando palavras de ordem contra o premiê, que vem adotando medidas que visam à islamização do país, como a proibição da comercialização do álcool.

O que ocorre hoje na Turquia, para o cientista político e mestre em cultura política turca Daniel Dall’Agnol, não é uma primavera, mas uma luta pela manutenção de valores democráticos. "Enquanto os países árabes lutaram para sair de uma ditadura islâmica, os turcos batalham para não se tornarem uma. Eles conhecem a democracia ocidental desde 1923 e não querem retroceder", conta.

Mudanças

Mesmo com a intensa mobilização – que já conta com apoio das centrais sindicais –, é improvável que os turcos obtenham resultados a curto prazo. A saída de Erdogan do poder, por exemplo, é difícil de ocorrer. "O primeiro-ministro precisaria receber um voto de desconfiança de todo o parlamento, mas esse é formado por seus correligionários", explica o professor de Relações Internacionais do Unicuritiba, George Sturaro. "Acredito que a população vai acabar se dividindo entre quem o apoia e quem discorda dele. De qualquer modo, a imagem do partido fica desgastada", completa Dall’Agnol.

Mesmo com a permanência do premiê no poder, entretanto, há uma possibilidade de os manifestantes conseguirem um resultado positivo. Os países da União Europeia têm uma "democracia liberal autêntica", com liberdades civis e políticas, enquanto a Turquia vive apenas uma "semidemocracia". "Se a população conseguir frear a islamização, as chances de entrar no bloco europeu aumentam", justifica Sturaro.

Modelo político turco começou nos anos 1920

A República da Turquia surgiu com a abolição do Império Otomano na década de 1920. O primeiro presidente, Mustafá Kemal Atatürk – sobrenome que significa "o pai dos turcos" – empreendeu uma série de medidas para ocidentalizar o país e torná-lo mais moderno. "Todos os símbolos islâmicos foram banidos e as mulheres ganharam direito de voto, tornando a Turquia pioneira na busca por igualdade de direitos de gênero", explica o mestre em cultura política turca Daniel Dall’Agnol.

Além de reformas no sistema educacional, da adoção do alfabeto com grafia latina e do estabelecimento de sobrenomes para a população – antes, as pessoas não tinham nomes de família –, Atatürk foi o responsável pela separação entre Estado e Igreja pela qual os manifestantes contemporâneos lutam. "A postura do primeiro-ministro Erdogan vai contra os princípios democráticos defendidos por Atatürk, que é extremamente adorado na Turquia até hoje", avalia Dall’Agnol.

O partido do "pai dos turcos", o Partido Republicano do Povo (CHP), nunca mais conseguiu chegar ao poder, o que ficou ainda mais distante a partir de 2001, com a criação do islâmico Justiça e Desenvolvimento (AKP) de Erdogan, principal partido da Turquia atualmente.

Os personagens

A Gazeta do Povo conversou com três manifestantes que estão participando dos protestos e, segundo eles, lutando para conseguir manter a democracia no país.

V.S.G., professora, 32 anos

"É muita violência por nada", explica a professora que prefere não ser identificada. Moradora de Istambul, onde começou a onda de protestos, ela aponta, em detalhes, exemplos da brutalidade policial. "Os policiais jogaram bombas de gás lacrimogêneo de helicópteros e começaram a atirar contra sacadas durante o dia", conta. Além de ir às ruas, ela adicionou as letras "TC" a seu nome no Facebook, representando apoio a "Türkiye Cumhuriyeti", que significa "República da Turquia" na língua do país.

Eda Ildam, especialista em marketing digital, 28 anos

Vinda de Istambul, mas moradora de Ancara, a especialista em marketing digital Eda Ildam enfatiza a importância da internet nos protestos em seu país. "Criamos hashtags como #occupygezi e #direngezi para mostrar nosso apoio e também desenvolvemos métodos para informar quando há alguma situação crítica", comenta. Segundo Eda, grande parte do povo turco está colaborando. "Quando cortaram o 3G da praça Taksim, os moradores da região nos deram as senhas do wi-fi. Se uma pessoa cai, 10 a ajudam."

G.U., Desenvolvedora de negócios e marketing, 31 anos

O governo de Erdogan não está respeitando o povo da Turquia. É assim que a desenvolvedora de negócios e marketing G.U., que não quer revelar seu nome por medo, avalia a situação de seu país. "Mesmo depois que os manifestantes disseram que queriam paz, a polícia nos atacou. Vivíamos pacificamente, mas as coisas mudaram. Erdogan é um valentão." Ela, que já morou no Brasil, diz que, se a Turquia se tornar um país islâmico como a Arábia Saudita, ela e sua família irão embora. "Nós temos medo", diz.

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