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Uma banda toca música iraquiana no restaurante Shawarma, em Bagdá, no Iraque, em 5 de julho de 2018 | Alice Martins/The Washington Post
Uma banda toca música iraquiana no restaurante Shawarma, em Bagdá, no Iraque, em 5 de julho de 2018| Foto: Alice Martins/The Washington Post

É quase meia-noite de quinta-feira e as ruas estão cheias em Bagdá, capital do Iraque. Há pessoas indo para casa depois do jantar com a família e amigos e pessoas para quem a noite acabou de começar.  No recém inaugurado clube Ibrahim Basha, a festa está apenas começando. Uma cantora síria com cabelos loiros até a cintura e saltos altos pink canta hits árabes, acompanhada por um talentoso músico iraquiano que toca alternadamente saxofone, piano e oud (instrumento de corda). Quando ela canta as músicas favoritas dos iraquianos, os clientes, em sua maioria homens, sentados em mesas cheias de garrafas de uísque, se levantam e dançam dabka, o tradicional estilo árabe.

Quinze anos após a invasão do Iraque, liderada pelos EUA, ter mergulhado o país em um ciclo de revolta e guerra, Bagdá está passando por uma espécie de renascimento. 

Ainda há revolta. Iraquianos furiosos com a corrupção de seus líderes e o fracasso do governo em suprir suas necessidades básicas, como eletricidade e água, passaram os últimos meses protestando em muitas partes do país. Há pouco otimismo entre os moradores de uma cidade cansada da guerra e que foi destroçada muitas vezes no passado por ousar ter esperança de um futuro melhor. 

Mas pela primeira vez, desde que alguém possa se lembrar, Bagdá não está em guerra. Embora ainda haja explosões e os sequestros sejam um problema, os incansáveis atentados suicidas que paralisavam todos diminuíram desde a derrota territorial do Estado Islâmico no ano passado

E a cidade está começando a respirar mais facilmente. Cafés, clubes e bares estão se proliferando. Há shoppings com cinemas mostrando os últimos lançamentos Há restaurantes no rio e peças de teatro e de comédia nos cafés. 

Às sextas-feiras, poetas recitam suas obras e artistas exibem suas pinturas nos jardins da era otomana que rodeiam a rua Mutanabbi, batizada em homenagem a um poeta iraquiano do século 10 que viveu quando Bagdá estava no epicentro do mundo civilizado. 

Cantora se apresenta no bar Ibraheem Basha em Bagdá, no Iraque, em 5 de julho de 2018Alice Martins/The Washington Post

Cidade sem explosões

A cidade ainda tem um longo caminho a percorrer para recuperar suas glórias passadas como capital de cultura e entretenimento, segundo os iraquianos. Mas já um consenso generalizado de que em nenhum momento nos últimos 40 anos, desde que Saddam Hussein adquiriu poder absoluto e levou o Iraque a uma série de guerras, Bagdá foi tão livre e tão divertido quanto agora. 

"Todos os iraquianos chegaram à conclusão de que é importante se divertir tanto quanto possível antes de morrer", diz Alaa Kahtan, diretor de teatro . 

A ausência de explosões não é a única razão para o novo sentimento de liberdade, segundo Kahtan. As milícias xiitas e seus partidos políticos associados, que ganharam proeminência após a invasão do Iraque liderada pelos EUA em 2003, estão agora mais poderosos do que nunca. Eles ganharam muito espaço nas eleições da primavera e devem ter um papel de liderança em qualquer governo que surgir. 

A ascensão também impulsionou as milícias para longe das vidas das pessoas. Elas forçavam as mulheres a cobrir os cabelos e explodiam lojas de bebidas na tentativas de afirmar sua autoridade. Um movimento para proibir o álcool, feita por partidos religiosos xiitas que dominam o parlamento, foi rejeitado no ano passado. 

"As milícias deixaram essas coisas para trás e têm ambições para um papel maior. Elas não se importam com o que você veste ou se você bebe álcool", conta Kahtan. "Eu me sinto mais livre no meu teatro, mais livre em minhas paixões. Eu tenho uma namorada e posso abraçá-la na rua". 

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Ele contou sobre a recepção a uma cena de uma de suas peças recentes em que uma mulher seminua usando um niqab, ou véu de rosto, faz uma dança no pole dance. Ele foi convocado por um comitê do governo para explicar a cena e recebeu a visita de representantes da milícia dirigida pelo clérigo Moqtada al-Sadr, que temia que ele estivesse insultando o Islã. Poderia ter acabado mal, mas depois de explicar que pretendia apenas fazer um comentário sobre a objetificação das mulheres, o assunto foi abandonado. 

Para o romancista Ahmed Saadawi, não há garantia de que o clima atual vai durar. "Tudo isso pode ser revertido pelos políticos, que demonstraram sua insensatez repetidas vezes", diz ele. "Mas esperamos que eles tenham aprendido com as tragédias anteriores, porque nem os sunitas, nem os xiitas, nem os curdos têm energia para outro conflito". 

Ele vê os iraquianos comuns e seu entusiasmo pela vida, em vez do governo inepto, como responsáveis pelo novo espírito. A onda de sectarismo que se seguiu à invasão de 2003, quando sunitas e xiitas procuravam refúgio em suas identidades religiosas e se confrontavam, era uma aberração e os iraquianos estão “voltando ao seu verdadeiro eu”, segundo Saadawi. 

"Há algo sobre o caráter iraquiano que remonta a milhares de anos", afirma, observando que os historiadores atribuem ao Iraque a invenção do licor há cerca de 7 mil anos. "Se divertir está enraizado na cultura iraquiana. Os iraquianos não são espirituais. Eles gostam de festa". 

Algumas das festas têm um ar nitidamente sórdido. Os clubes ao longo da rua Abu Nawas, que corre ao longo do rio Tigre, são estritamente somente para homens. Os homens pagam preços altos para beber álcool na companhia de recepcionistas. Clientes do sexo feminino não são permitidas. 

Famílias aproveitam uma noite em Bagdá, no Iraque, em 7 de julho de 2018Alice Martins/For The Washington Post

Um dos locais mais exclusivos é o rooftop bar do Palestine Hotel, reaberto recentemente, que já foi um ponto de encontro de autoridades baathistas e agora é frequentado por membros da nova elite do Iraque. Eles pagam US$ 100 por uma garrafa de uísque e podem escolher companhia para a noite entre as mulheres jovens e muito maquiadas sentadas ao redor do bar. 

Um médico que tomava uma cerveja sozinho confidenciou que não gostava do lugar, mas disse que não há muitas alternativas melhores para tomar uma bebida. "Não é como em seu país, onde homens e mulheres podem ir juntos a um bar e relaxar", disse o médico, que não quis dar seu nome por causa da reputação do bar. "Este lugar é barato. Quero dizer, moralmente barato. É tudo prostituição". 

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Muitas mulheres também estão se beneficiando do ambiente mais liberal. Embora a maior parte da clientela do clube Ibrahim Basha fosse composta de homens, um casal de meia-idade estava fumando cachimbos de narguilé e uma família, incluindo mulheres e crianças, bateu palmas ao som da música. 

No sofisticado restaurante Shawarma, um cantor iraquiano entretinha um público de maioria feminina, algumas com lenços de cabeça, outras não. Elas batiam os pés, balançavam os ombros e pareciam querer levantar para dançar, mas não o fizeram. 

A maioria dos iraquianos não bebe e os cafés, onde as mulheres podem sair sozinhas e se misturar livremente com os homens, se tornaram centros sociais. Até poucos anos atrás, o perigo nas ruas impedia as famílias de permitir que suas filhas saíssem sozinhas, segundo Mariam Sultan, 24, que tem mestrado em química médica e trabalha em um laboratório. Ela estava com um grupo de amigas no café Faisaliyah, que abriu no ano passado e atrai uma multidão com suas noites de comédia e bandas de rock ao vivo.  "As pessoas se tornaram muito mais livres em suas atitudes", diz. 

Pessoas se reúnem às margens do rio Tigre, em BagdáAlice Martins/Washington Post

Para pessoas que não podem pagar por cafés ou bares, a ponte Jadriyah sobre o Rio Tigre serve como uma espécie de local de festa improvisado. Normalmente elas tomam cerveja, ligam os rádios dos carros e, às vezes, dançam. 

A ponte é considerada o local mais legal de Bagdá por causa da brisa que sopra do rio. As famílias também frequentam a área, especialmente no verão, quando as temperaturas chegam a 38ºC, mesmo à noite. "Faz muito calor em casa, então viemos aqui, porque há muitas pessoas e podemos relaxar", disse Imad Salman, 50 anos, que estava na ponte com sua esposa e três filhos.

Desde meados de julho a polícia tenta acabar com o consumo de álcool ao ar livre e a ponte acabou se tornando um alvo. Enquanto Salman falava, chegou uma patrulha policial. "Corra, corra, a polícia está chegando", gritou alguém mais abaixo na ponte. Todos pularam em seus carros e fugiram. Meia hora depois, estavam de volta. A polícia voltou também e as pessoas se dispersaram de novo.  Era perto das 3 da manhã, hora de encerrar a noite.

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