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Desde a invasão russa, mais de 10 mil crianças ucranianas tiveram adoção forçada na Rússia, segundo denunciou Oksana Filipishyna, especialista independente em proteção dos direitos da criança, ao jornal francês Le Monde. Autoridades russas admitem um número menor, mas ainda assim alarmante: 2 mil crianças e adolescentes, órfãos devido ao conflito ou refugiados. Comunidades internacionais consideram isso um crime contra a humanidade. Para os russos, no entanto, trata-se de “tomar o que é já nosso”.
Essa frase foi dita por Olga Drujinina, uma mulher da Sibéria entrevistada pelo New York Times. Ela adotou quatro crianças ucranianas com idades entre seis e 17 anos, todas do oblast de Donetsk. “Nossa família é como uma pequena Rússia. A Rússia acolheu quatro territórios e [minha] família, quatro filhos”, descreveu. Ela disse que espera a chegada de um quinto ucraniano e os considera totalmente russos.
Uma menina entrevistada pelo jornal americano, Ania, de 14 anos, fugiu de sua casa que foi incendiada em Mariupol, onde estava se recuperando de tuberculose. O ônibus que deveria levá-la a Zaporizhzhia foi desviado para um posto de controle russo, conforme revelou a adolescente e outras crianças que estavam no mesmo veículo. Elas foram levadas a Donetsk, a capital homônima da região administrativa ocupada por separatistas pró-russos desde 2014. De acordo com o periódico americano, a autoproclamada república pró-russa está no centro da política de adoção do presidente Vladimir Putin.
A menina, que agora vive em uma família de acolhimento perto de Moscou, em breve se tornará oficialmente russa. “Eu não quero isso. Meus amigos e familiares não estão aqui”, lamentou Ania ao NYT, através de mensagens de voz.
Ania e outras crianças descreveram um processo doloroso de coerção e uso de força quando foram enviadas à Rússia. Os relatos se somam a um número crescente de evidências colhidas por governos e veículos jornalísticos sobre uma política de adoção de crianças vulneráveis.
De acordo com o jornal americano, para convencer as crianças mais velhas, Moscou faz propaganda de uma vida excepcional na Rússia. “Disseram: ‘Se você quer comprar coisas ou roupas novas, diga-nos. Vamos comprar tudo o que quiser. Se seus pais te abandonaram, é porque eles não precisam de você. Nós te ajudaremos’” relatou Timofeï, de 17 anos, ao New York Times.
Em maio, Putin instituiu um processo simplificado para nacionalizar menores ucranianos. Os primeiros meninos e meninas a chegarem ao país, em abril, tornaram-se cidadãos russos em julho. O governo russo deixa claro que seu objetivo é substituir qualquer apego infantil ao lar pelo amor à Rússia. A comissária para os direitos infantis no país, Maria Lvova-Belov, foi a responsável por organizar as transferências e ela mesma adotou um adolescente de Mariupol.
Transferir pessoas de um território ocupado pode ser considerado um crime de guerra e, segundo especialistas, é uma prática ainda mais problemática quando envolve crianças, que podem não ser capazes de opinar. A Ucrânia acusa a Rússia de cometer genocídio. A transferência forçada de crianças, quando destinada a destruir um grupo nacional, é de fato um ato de genocídio segundo o direito internacional, desde que seja comprovado que há um número exorbitante de vítimas. O Parlamento Europeu adotou, em setembro, uma resolução que condena essas atrocidades. E a União Europeia anunciou na quarta-feira (30) que instalará um tribunal especial para investigar os crimes de guerra na Ucrânia.
“É profundamente doloroso quando a história se repete assim diante dos nossos olhos. As práticas empregadas pelas ditaduras comunistas e nazistas são agora usadas pelo regime de Putin contra o povo ucraniano. A deportação de milhares de crianças inocentes, privadas de uma infância pacífica e arrancadas de suas famílias e de seu país, é um crime contra a humanidade”, analisou o eurodeputado Evin Incir. “Putin deve ser preso. Os crimes contra a humanidade cometidos pela Rússia devem cessar. Não podemos deixar a história se repetir na Ucrânia ou em nenhum outro lugar”, concluiu.
Estratégia de Putin
Esse sistema de deportação faz parte de uma estratégia mais ampla de Putin de tratar a Ucrânia como parte da Rússia e projetar sua invasão, vista como ilegal pelo Ocidente, como uma causa nobre.
“Para Putin, e para parte da população russa, ucranianos e russos formam parte de um mesmo grupo étnico, com línguas parecidas (podemos fazer a comparação entre português e espanhol), religiões parecidas (a parte oriental da Ucrânia é ortodoxa, assim como a Rússia, enquanto a parte ocidental é maioritariamente católica), e com uma história comum”, analisou David Fernando Santiago Villena Del Carpio, doutor em direito, mestre em direito e relações internacionais e professor da Universidade Positivo (UP), destacando que se trata de uma “russificação da Ucrânia”, na tentativa de apagar a história e a cultura do país vizinho.
Del Carpio lembrou que Putin procura projetar uma imagem, dentro da Rússia, de que está ajudando essas “crianças solitárias”, como se a “Mãe Rússia” estivesse socorrendo seus filhos. E isso é muito importante para o mandatário russo conseguir legitimar a invasão. “Tanto faz se a guerra é justa ou injusta, o importante é ter o apoio, a legitimidade da nação para continuar”, observou o professor.
Além disso, de acordo com Del Carpio, Putin prepara essas crianças que um dia poderão ocupar a Ucrânia. "Se voltarem ao território ucraniano, terão uma percepção distorcida sobre a Ucrânia, pois absorveram e assimilaram aquilo que a Rússia pensa”, descreveu.
Barreiras burocráticas para julgar os crimes
A adoção forçada de crianças ucranianas pode ser julgada como crime de guerra, porque, como explica o Estatuto de Roma, existe a deportação ou transferência de parte da população do território ocupado para fora do país. Porém, segundo Del Carpio, ainda é cedo para pensar em genocídio, porque “o número de vítimas é bem menor” do que costuma ser relacionado a esse tipo de crime.
Essa deportação forçada de crianças também pode configurar crime contra a humanidade, tendo em vista que é cometida de forma generalizada ou sistemática pelas forças russas. Então, o Estado russo está participando ativamente dessa operação que é dirigida contra a população civil não combatente.
O Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) indica no seu artigo 7 que a deportação ou transferência forçada de uma população constitui crime contra a humanidade, porém a Rússia não assinou esse texto, assim como os Estados Unidos e a China. Dessa forma, o TPI não tem jurisdição para investigar crimes em território russo. Seria necessário, então, levar esse pedido ao Conselho de Segurança da ONU, para que autorize essa investigação. No entanto, a Rússia é membro permanente com direito de veto desse conselho, e a China, com o mesmo poder, é aliada do país comandado por Putin.