O Camboja, país do sudeste da Ásia, é o epicentro de um fenômeno criminoso que assola essa região: a retenção de pessoas em trabalho forçado e/ou análogo à escravidão para que cometam crimes pela internet.
Em setembro do ano passado, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) divulgou um relatório que apontou o crescimento desse tipo de golpe no sudeste asiático.
Segundo o UNODC, situações em que pessoas são enganadas para serem obrigadas a cometer crimes já representam 10,2% de todos os casos de tráfico de pessoas relatados em todo o mundo.
No sudeste asiático, países como Camboja, Laos e Mianmar concentram grandes estruturas para prática de crimes cibernéticos, dentro de cassinos, hotéis e empresas, “onde as vítimas são confinadas e forçadas a cometer ou ser cúmplices de crimes cibernéticos”.
O relatório do UNODC apontou que, em um país dessa região, essa indústria criminosa já responde por metade do PIB – embora o país não seja mencionado nesse trecho do documento, pelos números apresentados, é possível saber que se trata do Camboja.
Muitos brasileiros estão entre as vítimas do esquema cambojano. Em outubro de 2022, a chefe do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania do Paraná, Sílvia Xavier, foi alertada de que haveria quatro paranaenses nessa situação no Camboja.
A partir desse fio, um novelo gigantesco foi revelado, relatou Sílvia à Gazeta do Povo. Segundo ela, um grupo de trabalho foi formado para ajudar os brasileiros retidos no Camboja para cometer cibercrimes, com representantes da Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas (OIM), do Ministério da Justiça, Interpol, Itamaraty, Ministério Público e Polícia Federal, Defensoria Pública da União e dos governos de São Paulo, Paraná, Bahia e Rio de Janeiro.
Em um ano e meio, 284 vítimas brasileiras deixaram o Camboja (algumas não voltaram ao Brasil, foram para outros países). Em nota, o Ministério da Justiça relatou que o retorno de países do sudeste asiático ocorre por várias vias: repatriação (custeada pelo Estado, para pessoas em situação comprovada de desvalimento), com recursos próprios das vítimas ou com apoio de organizações internacionais ou da sociedade civil, por exemplo.
Uma dificuldade é que o Brasil não tem embaixada ou consulado no Camboja. Outro entrave é que o ponto focal da OIM no país asiático, que vinha fazendo recâmbio de vítimas, começou a sofrer ameaças e não pôde mais ajudar, relatou Sílvia.
Mesmo assim, quase 300 brasileiros conseguiram deixar o pesadelo cambojano – e começaram a viver outros, afirmou a diretora.
“Essas pessoas sofreram todo tipo de violência. Você atende uma vítima que não consegue mais trabalhar, não consegue sair de casa, tem medo do ser humano”, afirmou.
Além disso, de acordo com Sílvia, muitas passaram a ser perseguidas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), ligado às quadrilhas cambojanas e que faz ameaças para que essas vítimas não relatem às autoridades brasileiras o que sofreram.
Exatamente por isso, brasileiros que retornaram do Camboja não aceitaram conceder entrevista à Gazeta do Povo: temiam que, mesmo sem serem identificados nesta reportagem, qualquer trecho dos seus relatos poderia ajudar o PCC a saber quem são.
Da promessa ao pesadelo
Nas conversas com as vítimas, Sílvia Xavier ficou sabendo detalhes do modus operandi dessas quadrilhas cambojanas com ramificações internacionais.
Segundo a diretora, as vítimas são sempre aliciadas por pessoas conhecidas. “Um vizinho, amigo, parente, parente de um parente, que oferece uma boa oportunidade com ganhos exorbitantes de maneira fácil”, explicou.
No caso específico do Camboja, os brasileiros recebem propostas para trabalhar como agentes financeiros. Chegando lá, são obrigados a vender criptomoedas falsas exclusivamente para brasileiros.
Para isso, têm que recorrer a diferentes táticas, inclusive com promessas de relacionamento amoroso. “Pessoas carentes caíam nessa cilada”, relatou Sílvia.
Mantidos em cárcere, os brasileiros têm documentos retidos, enfrentam jornadas de trabalho de até 15 horas diárias, só podem sair em grupos (“Se iam a uma farmácia, eram obrigados a tirar e enviar fotos dos pés para comprovar que permaneciam juntos”) e muitas vezes comem apenas uma refeição por dia (“Alguns chegaram a comer ratos”).
O banheiro é um buraco no chão, e os que demoram mais de cinco minutos fazendo suas necessidades têm que pagar multas – que também são aplicadas em outras situações (se a pessoa se esquece de desligar o ar condicionado, por exemplo).
Agressões físicas também são comuns, segundo os testemunhos colhidos por Sílvia Xavier, assim como a venda de trabalhadores para outras organizações criminosas, incluindo chinesas. Considerando a lucratividade para a economia local, autoridades fazem vista grossa.
“Um rapaz passou por oito, nove países para chegar lá e em nenhum deles ele chegou a apresentar carteira de identidade. Ele chegava, estava a foto dele, o nome dele, e ele saía por uma porta ao lado, não passava por nenhum tipo de fiscalização, nenhum policial pedia documento. Entende-se que essa organização criminosa é muito grandiosa, está em muitos países, e certamente há autoridades dentro dela”, disse a diretora.
Mudanças possíveis – mas só até certo ponto
Na nota enviada à reportagem, o Ministério da Justiça afirmou que medidas foram tomadas para resgatar mais brasileiros do golpe cambojano: a confecção de um informativo sobre repatriação de brasileiros em possível risco de tráfico de pessoas do Camboja, Laos, Mianmar e Tailândia; e o desenvolvimento de um protocolo operativo padrão de atendimento às vítimas brasileiras do tráfico internacional de pessoas.
Sílvia Xavier destacou outras iniciativas, como a elaboração do quarto plano nacional de atendimento às vítimas de tráfico humano e trabalho análogo à escravidão e discussões para mudanças na legislação, para que a pessoa não seja responsabilizada criminalmente pelos crimes que foi obrigada a cometer lá fora (a diretora também defende tornar a punição por tráfico de pessoas mais rígida).
Ainda assim, há limitações até onde esse trabalho pode chegar, pela forma como a cultura do cibercrime está entranhada no Camboja, alertou a diretora.
“Nós temos nossas leis, cada país tem as suas, a gente não tem como controlar isso. A gente só pode sugerir [mudanças no Camboja]. É uma nação acostumada a esse tipo de trabalho, a esse tipo de crimes”, lamentou.
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