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Na última semana a Argentina se tornou o país com a maior taxa diária de mortes por Covid-19 entre as nações com mais de um milhão de habitantes: chegou a 8 mortes/1.000.000 de habitantes nesta quinta-feira, segundo levantamento do site Our World In Data, que leva em consideração a média móvel dos últimos sete dias. Por comparação, o Brasil não chegou a passar das 5 mortes diárias por milhão de habitantes durante a pandemia. Jornais argentinos também noticiaram um recorde de 470 mortes em um único dia no país vizinho nesta semana.
Embora os números de casos e mortes estejam aumentando na Argentina com a interiorização do coronavírus, os dados de "mortes/dia/milhão de habitantes" não permitem estabelecer um panorama sobre como a pandemia está avançando no país. Isso porque o governo federal vem incluindo na contagem óbitos por Covid-19 que ocorreram em meses anteriores. Os altos números anunciados nesta semana, especialmente na província de Buenos Aires, se referem a mortes que ocorreram em julho e agosto.
Para citar um exemplo do atraso, o jornal Clarín explicou que dos 276 óbitos por Covid-19 registrados na província de Buenos Aires em 22 de setembro, apenas 48 tinham acontecido nas últimas 24 horas. Isso acaba distorcendo as estatísticas diárias sobre a doença.
Um levantamento feito pelo cientista político argentino Federico Tiberti, coautor do livro “La república pendiente: la Argentina y el problema del desarrollo político”, mostrou que nos últimos dias a mais populosa província do país reportou mais de 800 mortes que na verdade ocorreram antes de setembro.
Considerando a curva de mortes por data de falecimento, segundo dados do governo, o pico teria sido 227 em 24 de agosto. O gráfico do site de Ministério da Saúde mostra que os óbitos por Covid-19 estão diminuindo desde então, mas estes dados também não são confiáveis porque, devido aos atrasos nas notificações, acredita-se que eles venham a aumentar no futuro com novas revisões.
“Se o número de mortes por dia não for confiável, é quase impossível saber onde estamos em relação à trajetória da epidemia. Portanto, é urgente melhorar o envio, registro e notificação dos óbitos, principalmente na Província de Buenos Aires, para que as medidas tomadas sejam corretas”, afirmou o ex-ministro da Saúde da Argentina Adolfo Rubinstein no Twitter.
De acordo com o Clarín, o governo de Buenos Aires culpa as clínicas privadas pelo atraso.
Um número mais confiável, porém ainda insuficiente para determinar a situação atual da doença no país, seria o total de óbitos pela população desde o início da pandemia. A Argentina registrou, até agora, segundo o Our World In Data, 326 mortes por milhão de habitantes. Por ter conseguido atrasar a propagação da doença nos primeiros meses da pandemia com uma quarentena nacional, a Argentina, até agora, tem apenas metade da taxa de óbito por população registrada no Brasil, que é de 657/milhão de habitantes.
Olhando para outros dados
Mas um mês atrás a taxa de mortes na Argentina era de 156/milhão de habitantes. Ou seja, nos últimos 30 dias o país reportou o dobro de mortes por Covid-19, independentemente da data em que os falecimentos ocorreram. O país passou das 14 mil mortes por Covid-19, e já é o 14º com maior número absoluto de vítimas no mundo.
O número de casos também está em ascensão. Já são mais de 678 mil, colocando a Argentina como o 9º país do mundo com mais infectados pela Covid-19. Neste momento, a quantidade de casos está dobrando a cada 32 dias no país (considerando-se apenas a capital, o número de casos duplica a cada 95 dias). Isso se explica pela disseminação do vírus para o interior do país. Se antes 90% dos casos se concentravam nos arredores da capital, agora a proporção está em 50%.
Outro dado preocupante para os argentino é a taxa de testes positivos. A cada 100 testes de Covid-19 realizados no país vizinho, 55 dão positivo, segundo o Our World In Data. De acordo com critérios publicados pela OMS (Organização Mundial de Saúde), uma taxa de positivos inferior a 5% é um indicador de que a epidemia está sob controle em um país. Dos quatro países da América do Sul que reportam esse dado, apenas o Uruguai tem taxa abaixo de 5% (0,6%) – o Brasil não informa esse dado sobre a testagem.
Esta alta taxa de positivos na Argentina ocorre, em parte, devido ao baixo número de testes que são aplicados na população. Segundo o Ministério da Saúde, do início da pandemia até sexta-feira foram realizados 1.842.991 testes diagnósticos, o que equivale a 40.615,3 amostras por milhão de habitantes. Um levantamento feito pelo jornal La Nación, junto com a Rede de Jornalistas da América Latina para Transparência e Anticorrupção, mostrou que os quatro kits de testes diagnósticos desenvolvidos por laboratórios locais com auxílio financeiro do Estado não deslancharam a testagem conforme o esperado. Em setembro representam somente 35,9% dos testes de Covid-19 realizados no setor público.
Até pouco tempo atrás, a Argentina era considerada um exemplo de sucesso na América quando se falava em contenção da propagação do coronavírus. De fato, até agora, pode-se afirmar que a quarentena salvou vidas ao permitir que o governo organizasse seu sistema de saúde para enfrentar a crise. Porém, a estratégia do presidente Alberto Fernández não resistiu ao cansaço da população com uma quarentena exaustiva e prolongada, à necessidade de milhões de sair de casa em busca de sustento para não passar fome e a uma reabertura feita de maneira desordenada que permitiu a disseminação do vírus para o interior. E enquanto lida com o agravamento da crise de saúde no interior, o governo argentino precisa observar com atenção outros dados nada promissores: uma taxa de desemprego de 13,1%, recorde nos últimos 15 anos, e uma previsão de contração de 10% da economia para 2020.
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