No último fim de semana de março, o alto representante para Política Externa da União Europeia (UE), o espanhol Josep Borrell, participou da Cúpula Ibero-Americana na República Dominicana e, em entrevista à agência EFE, considerou que a América Latina está sendo “subestimada, subvalorizada”.
Para o diplomata, a região “poderia ser o novo Golfo Pérsico [...] em um mundo que vai prescindir dos hidrocarbonetos para entrar na energia sustentável”, numa referência às “enormes reservas de lítio”, para as quais os países envolvidos “já estão se organizando entre si para formar uma aliança para enfrentar todos juntos a demanda internacional que vão receber”.
O chamado Triângulo do Lítio, formado por Argentina, Bolívia e Chile, corresponde a cerca de 60% das reservas mundiais do metal, usado nas baterias de carros elétricos.
Num contexto de busca por mudanças na matriz energética, os três países têm grandes possibilidades de crescimento nas próximas décadas, mas fica a dúvida: como houve uma “maldição do petróleo” – ou seja, muitos países com grandes reservas ficaram reféns da commodity e não conseguiram gerar desenvolvimento social e econômico para suas populações –, existe risco de uma “maldição do lítio”?
No ano passado, a revista inglesa The Economist apontou que a Bolívia já vive uma “maldição do lítio”, porque não consegue explorar suas grandes reservas e segue um dos países mais pobres da região.
“Potosí é a região mais pobre da Bolívia, que é o segundo país mais pobre da América do Sul. Mais de dois terços dos potosinos vivem em casas feitas de tijolos de barro ou terra. Na estação chuvosa, quando o barro vermelho vira lama, as estradas não pavimentadas da região ficam intransitáveis. Seus residentes carecem de atendimento de saúde e escolas adequados: um quarto das mulheres ainda dá à luz em casa; quase 40% dos adultos só frequentaram a escola primária e quase 20% nunca foram à escola”, destacou a publicação.
Dos três países do Triângulo do Lítio, a Bolívia é o que menos explora o recurso. No Chile, empresas exploram as reservas desde o início da década de 1980, e em janeiro o presidente Gabriel Boric anunciou que seu governo pretende criar uma estatal do setor.
Na Argentina, onde as concessões de mineração são feitas pelas províncias, há um total de 38 projetos em vários estágios de desenvolvimento que se concentram em Jujuy, Salta e Catamarca, e os governos das três províncias concordaram em fevereiro em implementar mecanismos para que as empresas do setor destinem uma porcentagem de sua produção à industrialização no país.
Enquanto isso, no departamento boliviano de Potosí, moradores têm realizado protestos para que o consórcio chinês CBC melhore as contrapartidas sociais no projeto para exploração do Salar de Uyuni que deve entrar em funcionamento nos próximos meses. Em 2019, uma parceria entre uma estatal boliviana e uma empresa alemã foi desfeita pelo mesmo motivo.
“A Bolívia, dos três países, é o elo mais delicado, porque apesar de ter a maior reserva do Triângulo, é o que o menos explora, tem a menor produção. Tem alguns dificultadores, o custo da extração é mais caro, não tem saída para o mar, é um caso especial”, afirmou Nora Keite Sampaio, especialista em estudos avançados de geopolítica e professora de geografia do grupo Mackenzie, em entrevista à Gazeta do Povo.
Uma Opep do lítio
Os governos da Argentina, Bolívia e Chile vêm discutindo a possibilidade de criar um mecanismo como a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), para controlar a oferta e consequentemente os preços.
“É o único jeito deles terem poder de decisão sobre o valor, mas entendo que isso ainda está muito longe de acontecer porque a frota de carros elétricos ainda é muito pequena, o custo desse produto ainda é muito elevado para o consumidor final. Esses países não vão ter esse poder de negociação tão cedo para criar uma organização que assuma esse papel que a Opep assumiu [em relação ao petróleo] na década de 1960. Por isso, o preço ainda virá de quem vai comprar, dos maiores polos consumidores”, ponderou Sampaio, que destacou a necessidade de planejamento para que a “maldição do lítio” não se concretize.
“Se não houver um projeto de governo, que consiga destinar recursos para promover um ganho e desenvolvimento social, realmente isso não vai ser possível. Não estou falando de estatizar, concentrar todos os recursos. Mas se um país, um povo não se mobiliza e participa diretamente, ele vai ficar refém de projetos de exploração de commodities”, alertou a especialista.
“Se esses projetos ficarem dependentes de commodities e reféns do mercado global, porque se é commodity é cotado internacionalmente, não vejo uma história muito diferente do que aconteceu nesses outros países [produtores de petróleo]”, acrescentou.
Presença chinesa
A China, que já busca o mercado de lítio sul-americano (além do consórcio CBC na Bolívia, a empresa chilena SQM tem entre seus acionistas a chinesa Tianqi desde 2019), deve travar com o Ocidente uma disputa pelos recursos locais.
“Quando eu falei da Bolívia, o alto custo de extração, sem saída para o mar, hoje o único país capaz de fazer a exploração do lítio com bastante vantagem comercial é a China, porque os processos que ela financia tornam esse custo mais barato. Os outros países ainda têm custos muito elevados”, destacou Sampaio.
“O Olaf Scholz veio aqui para isso [o chanceler alemão esteve na América do Sul no início do ano, e o lítio foi um dos focos da sua visita], tentar parcerias, porque como a China já abocanhou um mercado grande em várias áreas na América do Sul, há um medo dos países ocidentais de isso avançar. O lítio é só mais um item da guerra comercial, desse contexto de disputa por uma nova ordem mundial.” (Com Agência EFE)
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