Quando manifestações de rua forçaram o presidente da Guatemala a renunciar, no final do ano passado, em meio a um escândalo de corrupção, o caso pareceu ter sido uma interrupção rara numa tradição longa e lucrativa de impunidade na América Latina.
Agora, ele dá indícios de ter sido o prenúncio de um movimento maior por um governo mais limpo. Escândalos de tráfico de influência e subornos vêm incomodando países desde o México até o Chile. Munida de novas ferramentas jurídicas e do ativismo eletrizado das mídias sociais, surge uma classe média angustiada e emergente, e cada vez mais bem informada, difícil de intimidar e indisposta a aceitar a noção do cargo público como um caminho para o enriquecimento pessoal.
No Brasil, uma imensa investigação de corrupção sobre a empresa estatal de combustíveis Petrobras envolveu o partido governante e trouxe a presidente Dilma Rousseff à beira de um impeachment. Na Argentina, há investigadores fechando o cerco contra a ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, cuja fortuna se multiplicou enquanto estava no governo. As manchetes no Peru, Equador e outras nações vêm sendo dominadas por histórias de propinas, subornos e contas suspeitas no exterior.
“Sempre tivemos corrupção, mas houve uma mudança fundamental em sua exposição e na habilidade de enfrentá-la”, disse Shannon O’Neil, especialista na área de Assessoria de Relações Exteriores.
Esse impulso atual não tem o mesmo fervor em toda a América Latina, e seria ingênuo supor que um velha calamidade como essas possa desaparecer da noite para o dia. O problema é ainda mais profundo em áreas controladas pelo tráfico de drogas.
Muito da corrupção latino-americana tem suas origens na centralização desequilibrada e na venalidade do domínio colonial espanhol. As ditaduras militares da era da Guerra Fria não foram melhores, e em muitos casos a chegada da democracia apenas amplificou as oportunidades para desvio de dinheiro. A cultura parasítica da corrupção funciona como um tipo de imposto sobre o crescimento, que, segundo especialistas em desenvolvimento econômico, o esgota e corrói a confiança nas instituições democráticas.
A diferença hoje é que, em boa parte da América Latina, novos mecanismos jurídicos estão erradicando crimes que antigamente teriam passado despercebidos. No Brasil, reformas judiciais realizadas sob o próprio governo do PT de Rousseff em 2013 expandiram o sistema de delação premiada que está levando a acusações contra alguns de seus membros hoje – junto de dúzias de outros políticos brasileiros.
Os investigadores andam usando esses recursos como um pé-de-cabra para arrombar as velhas muralhas de silêncio, persuadindo os comparsas do partido a se voltarem uns contra os outros.
Um corpo judicial independente patrocinado pela ONU na Guatemala, conhecido pelas suas iniciais CICIG, ajudou a dar a promotores, juízes e cidadãos comuns a confiança necessária para enfrentar figuras poderosas como o ex-presidente Otto Pérez Molina. No passado, era fácil para os governos autoritários do país controlarem os tribunais e silenciarem ativistas.
Mas a democracia, segundo analistas, amadureceu em muitas partes da América Latina. Os grupos pró-direitos humanos que desafiaram corajosamente as ditaduras militares de uma geração atrás hoje se juntam a organizações da sociedade civil que exigem mais transparência e responsabilidade. Em muitos países, houve melhorias também na liberdade de imprensa. As redes sociais forneceram aos cidadãos comuns uma ferramenta poderosa para amplificar sua raiva e canalizá-la para as ruas.
“A nossa geração diz que, se quisermos superar esses problemas, é agora ou nunca”, diz Alvaro Montenegro, 28, um aluno de direito na Guatemala que foi um dos principais organizadores do movimento para derrubar Pérez Molina no ano passado.
O grupo de Montenegro utilizou o Facebook para publicar textos e depoimentos e compartilhar informações sobre supostos crimes. O Twitter se tornou sua ferramenta mais poderosa para reunir manifestações nas ruas, permitindo comunicação direta com os apoiadores e com a mídia, forçando os políticos ao engajamento direto, segundo ele.
Agora há leis anticorrupção aprovadas ou a caminho de ser aprovadas no México, na Colômbia e no Chile, em resposta às exigências dos cidadãos por um governo mais limpo.
Elas refletem a influência política crescente de uma classe média latino-americana nova, nervosa e determinada a não encolher. No começo dos anos 2000, uma explosão de commodities, em sua maior parte alimentada pelas demandas da China, tirou milhões da pobreza. Agora os preços do petróleo, de minérios e produtos agrícolas estão em baixa, e as economias da região acabaram perdendo força.
Com menos dinheiro para programas de bem-estar social, os incumbentes sofreram uma queda de popularidade, e suas finanças – bem como orçamento – estão sob uma vigilância mais detida.
A bonança alimentada pelas exportações gerou oportunidades para tráfico de influência e corrupção numa nova escala. Muitas das maiores empresas da região em indústrias como a da mineração e do petróleo são firmas estatais que produziram vastas fortunas, junto de novas maneiras de surrupiá-las.
Cerca de até US$12 bilhões foram desviados da Petrobras, que já foi o motor do crescimento do Brasil, segundo a investigação judicial da “Lava Jato”, que expôs uma cultura sórdida de desvios e roubo entre executivos da empresa e políticos.
A própria Rousseff não foi acusada de corrupção, mas foi presidente do Conselho de Administração da Petrobras quando aparentemente todo mundo ao seu redor estava enchendo os bolsos.
Porque as épocas boas também foram um período de grandes despesas governamentais, segundo analistas, elas fizeram crescer expectativas sobre o papel do Estado na redistribuição de renda e fornecimento de serviços.
“No contexto do desaquecimento econômico e encolhimento dos orçamentos, a corrupção desenfreada em boa parte da região ficou particularmente desagradável de se ver”, disse Michael Shifter, presidente da Inter-American Dialogue, um “think-tank” de Washington, D.C. especializado na América Latina. “A repulsa pública em relação a esse péssimo comportamento vem crescendo”.
Mesmo líderes conhecidos por sua reputação imaculada como a presidente do Chile, Michelle Bachelet, acabaram se sujando. Com as acusações de suborno e sonegação de impostos pesando contra a sua nora, as taxas de aprovação de Bachelet, até então popular, caíram para 25%.
Como Rousseff, no Brasil, ela é uma das líderes da esquerda que ascenderam ao poder na última década em parte graças à ideia de que eram diferentes do pessoal do mundo dos negócios e que, por isso, não sucumbiriam às suas tentações.
Nas eleições presidenciais de novembro, muitos argentinos professaram a visão oposta, apoiando o empresário abastado Mauricio Macri, com a ideia de que ele não precisaria roubar se já é rico.
Mas a reputação de honesto de Macri também foi abalada este mês, quando seu nome apareceu nos Panama Papers como o ex-diretor de uma empresa não-declarada no exterior. Ele nega ter cometido qualquer crime e afirma nunca ter ganhado dinheiro com essa firma. Fernández também insiste que é inocente, mas foi convocada a depor este mês num caso de fraude, e o promotor vem procurando incluí-la numa investigação de lavagem de dinheiro.
Diferente dos Estados Unidos, onde o tráfico de influência foi legalizado e transformado numa indústria de lobby e sistema de financiamento de campanha, a noção da presença de dinheiro de empresários na política da América Latina, em sua maior parte, continua tabu. Por isso, ela prospera às escondidas.
As campanhas políticas na América Latina estão se tornando mais caras e competitivas do que nunca. Não resta virtualmente mais nada da cultura de pequenas doações de eleitores, por isso os candidatos se voltam aos interesses dos negócios para angariar fundos. E alguns também forram suas fortunas pessoais.
“Falando em termos muito gerais, nos Estados Unidos, os políticos têm incentivos distintos”, disse O’Neil. “Você não pode jamais ser visto como corrupto quando está no cargo, mas, se você for um oficial público de destaque, é possível arranjar um emprego bacana no setor privado quando terminar o mandato”.
“A sua renda aumenta”, ela disse. “Já para os políticos da América Latina, a renda deles nunca foi mais alta do que nos anos em que estão no cargo”.
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