Nos Estados Unidos, diariamente, 115 pessoas morrem de overdose de opioides. O número assusta e é mais fatal do que acidentes de trânsito, que em 2016 tiraram a vida de 37.461 pessoas. Segundo o Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas (Nida) dos EUA, nesse mesmo ano, 42.249 pessoas morreram devido ao abuso de opioides, que inclui substâncias como analgésicos prescritos, usados no tratamento de dor severa, heroína e opioides sintéticos, como o fentanil.
Dados preliminares do Centro de Controle e Prevenção de Doenças mostram que houve um salto de 9,5% de mortes por overdose de 2016 para 2017, quando mais de 72 mil pessoas perderam a vida pelo abuso de drogas. Dentre elas, o Nida estima que 49 mil tenham sido em decorrência do uso abusivo de opioides.
O custo econômico da epidemia também impressiona. O Conselho de Consultores Econômicos, agência federal americana, estimou que, em 2015, “o custo econômico da crise de opioides foi de US$ 504 bilhões, ou 2,8% do PIB”.
O governo americano tem concentrado esforços na redução do fornecimento ilegal de analgésicos à base de opioides naturais, que são produzidos a partir da papoula (como morfina), e semissintéticos, derivados de opióides naturais com propriedades analgésicas (como a hidrocodona e a oxicodona, substâncias amplamente indicadas para tratamento de dores intensas).
As estatísticas do CDC mostram que as ações de combate à epidemia podem estar dando certo. Houve um grande aumento no número de overdoses fatais por abuso de analgésicos prescritos entre 2002 e 2011, mas o indicador se manteve estável desde então. As mortes envolvendo hidrocodona e oxicodona parecem ter diminuído, oferecendo uma possível esperança de que as mortes por analgésicos tenham atingido o pico.
Mas agora o problema é outro: os opioides sintéticos, produzidos integralmente em laboratórios. O que tem pressionado para cima as terríveis estatísticas são os casos de mortes por fentanil, uma substância 50 vezes mais potente do que a heroína, barata e fácil de fabricar, e carfentanil, ainda mais potente, usada como tranquilizante de grandes animais. De acordo com o Nida, as mortes causadas pelos opioides sintéticos, especialmente o fentanil, passaram de 19 mil em 2016 para 29 mil em 2017.
Mesmo uma pequena dosagem destas drogas pode matar uma pessoa e, por serem baratas, elas estão sendo misturadas a outras, como heroína e cocaína, como uma maneira de aumentar o lucro de traficantes. Em Cincinnati, Ohio, cidade de cerca de 300 mil habitantes, 174 usuários tiveram overdoses em apenas seis dias depois de consumir heroína misturada com carfentanil.
O fentanil que chega aos Estados Unidos vem, principalmente, de dois “fornecedores”: os cartéis mexicanos e os laboratórios clandestinos chineses, que vendem a substância na dark web.
As autoridades estaduais e federais estão aumentando as ações de policiamento para combater a distribuição destes opioides. O Departamento de Justiça triplicou os processos por venda ilegal de fentanil em todo o país e apreendeu milhares de quilos de heroína e fentanil. No mês passado, o departamento prendeu dois dos maiores vendedores de drogas na dark web em um esforço da administração Trump para conter a venda de drogas ilícitas. Matthew e Holly Roberts, de San Antonio, no Texas, fizeram quase 3.000 transações em vários mercados clandestinos entre 2011 e 2018, de acordo com os promotores.
O governo também processou, pela primeira vez, cidadãos chineses, acusados de enviar grandes quantidades de fentanil aos americanos.
Segundo Keith Humphreys, professor de psiquiatria e especialista em políticas de drogas da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, os Estados Unidos estão em maus lençóis se dependerem da ajuda de Pequim na luta contra o tráfico de fentanil por causa da guerra comercial entre os dois países. "Eles poderiam nos ajudar, mas não vão", disse Humphreys, que trabalhou durante um ano no Escritório de Política Nacional de Controle de Drogas no governo Obama.
Prescrições
Nos últimos dois anos, os governos estaduais trabalharam em outras frentes para reduzir o consumo de opioides, mas ainda focados em uma guerra contra os analgésicos. No início de 2016, o estado de Massachusetts criou a primeira lei do país que limitou a prescrição de opioides – neste caso, em sete dias para a primeira prescrição. Até o fim de 2017, pelo menos 28 estados haviam aprovado legislações determinando o prazo máximo que um paciente poderia tomar analgésicos pela primeira vez. Porém, ações como esta podem ter contribuído para o aumento de overdoses por fentanil e heroína.
A pressão sobre os médicos resultou na redução da prescrição de opioides nos consultórios. Em 2012, de acordo com o CDC, o número total de receitas dispensadas atingiu o pico. Foram mais de 255 milhões e uma taxa de 81,3 prescrições a cada 100 pessoas. No ano passado, o índice havia caído para 58,7.
“Sim, nós precisamos diminuir o número de prescrições, mas ao mesmo tempo precisamos informar os pacientes e monitorar o tratamento”, afirmou, citando casos em que a prescrição é inevitável para garantir qualidade de vida para as pessoas, como as que estão lutando contra um câncer. De acordo com a revista Scientific American, cerca de 25 milhões de americanos sofrem diariamente com dores crônicas e as opções de tratamento geralmente se concentram em medicações como morfina e oxicodona.
Mesmo assim, o número de mortes por overdose continua em uma trajetória crescente no país. A agência federal Administração de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA) quer encorajar o desenvolvimento de substâncias analgésicas livre de opiáceos para tratamento de dores. Nos próximos seis a 12 meses, a agência planeja publicar vários documentos destinados a estimular o desenvolvimento de medicamentos para tipos específicos de dor. O resultado deve levar a testes clínicos menores, aprovações mais rápidas e lançamentos mais rápidos de novas terapias, segundo o comissário Scott Gottlieb.
Algumas pesquisas já estão rendendo resultados promissores. Um estudo com macacos, publicado no periódico Science Translational Medicine, está testando uma substância, chamada de AT-121, que promete aliviar a dor sem causar dependência. Ele exerce um efeito analgésico semelhante à morfina em concentrações 100 vezes menores do que o habitual.
"Ela deu alívio muito eficaz da dor, os efeitos de recompensa não apareceram e suprimiu o potencial de dependência do Oxycontin [nome comercial da oxicodona]", disse à Scientific American Nurulain Zaveri, médico químico que participa da pesquisa. "Isso sugere que a substância poderia ser um substituto aos opiáceos analgésicos receitados e que, na verdade, poderia ser dado a alguém que é viciado".
Jovens são mais atingidos
Os Estados Unidos concentram 4% da população mundial, mas cerca de 27% das mortes por overdose ocorrem no país. A epidemia dos opioides está atingindo principalmente os jovens e fez cair pelo segundo ano consecutivo a expectativa de vida do país.
Em 2016, uma em cada 65 mortes nos EUA envolveu abuso de opioides. Fazendo um recorte para a população de jovens adultos, entre 25 e 34 anos, a estatística salta para um em cada cinco, segundo um estudo do CDC publicado em junho.
Até mesmo bebês estão sentindo os efeitos negativos da crise. De 1999 a 2014, o número de grávidas com vício em opioides quadruplicou. Um relatório publicado pelo CDC em agosto afirma que o uso de opioides por grávidas é “uma preocupação significativa de saúde pública” que pode levar a trabalho de parto prematuro, morte de nascituros, síndrome de abstinência neonatal e mortalidade materna.
Os motivos da crise crise
Os opiodes são prescritos significativamente com mais frequência nos EUA do que em outros países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, 50 mil doses de opioides são tomadas diariamente para cada milhão de residentes – é uma taxa 40% maior do que a da Alemanha e do Canadá e seis vezes maior do que a da França e de Portugal.
Mas o que explica esses números tão discrepantes?
Um dos motivos elencados por especialistas é a propaganda. Os Estados Unidos são um dos dois únicos países que permitem que empresas de medicamentos controlados anunciem na televisão – o outro é a Nova Zelândia. Em 2016, as empresas farmacêuticas gastaram US$ 6,4 bilhões em publicidade. Especialistas dizem, também, que as faculdades de medicina dos EUA não fizeram o suficiente para educar os alunos sobre o controle da dor, o vício e o uso e abuso de opioides.
As empresas farmacêuticas também tentam atrair os médicos com presentes. Algumas empresas organizam jantares extravagantes e outras patrocinam conferências e reuniões. Em 2016, por exemplo, a Purdue Pharma, fabricante do OxyContin, gastou US$ 7 milhões em presentes para médicos e hospitais universitários. De 1996 a 2001, a empresa patrocinou 40 "simpósios nacionais de gestão da dor" em resorts na Flórida, no Arizona e na Califórnia. No mesmo período, a empresa dobrou sua força de vendas, distribuindo cupons para que os médicos pudessem oferecer aos pacientes suprimentos para 30 dias de OxyContin e outros medicamentos altamente viciantes. Nesses seis anos, as prescrições para OxyContin saltaram de 670 mil para mais de 6 milhões.
Também há um fator cultural no sistema de saúde americano. Há pressão para lidar com a dor e uma atitude generalizada de que tudo é remediável. Como resultado, os médicos nos Estados Unidos são muito mais propensos a fornecer analgésicos do que os médicos de outros países. Um estudo comparativo descobriu que os médicos japoneses tratavam a dor aguda com opioides em 50% das vezes. Nos Estados Unidos, a recorrência saltou para 97%.
"Tenho 51 anos", disse o professor Keith Humphreys, da Universidade de Stanford, à BBC. "Se eu for a um médico americano e disser: 'Ei, corri a maratona que costumava correr quando tinha 30 anos, agora estou todo dolorido, me cure', meu médico provavelmente tentará me curar. Se você fizer isso na França, o médico diria: "É a vida, tome um copo de vinho, o que você quer de mim?’".
Apesar disso, há evidências de que o consumo de opioides em outros países desenvolvidos esteja aumentando. No Reino Unido, por exemplo, as doses prescritas diariamente aumentaram de 1.658 para 5.227 a cada um milhão de pessoas de 2003 a 2013. Um estudo conduzido na Escócia revelou que entre 2003 e 2012, o número de prescrições de opioides considerados fortes saltou de 474.385 para 1.036.446 por ano. Entretanto, o professor Blair Smith, da Universidade de Dundee, que participou da pesquisa, afirmou que a maioria das receitas parecia ser apropriada. “Descobrimos que [as prescrições] estavam relacionadas à presença e gravidade da dor, e ainda há muitas pessoas que têm dor significativa, mas não estão tomando um opioide”, escreveu em artigo para o site The Conversation.
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