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Antes de enfrentar a China, os EUA terão de enfrentar a si mesmos

Representantes de China e Estados Unidos estiveram em reunião no Alasca para discutirem a política externa e interna dos dois países. (Foto: Frederic J. BROWN / AFP)

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O primeiro encontro de alto nível entre o governo Biden e a China terminou com uma espécie de briga ao vivo na televisão. Realizado em Anchorage, Alasca, e com a duração de dois dias, contou com os ministros das Relações Exteriores e os conselheiros de segurança nacional de ambas as potências do Pacífico.

A China considera-se vencedora desta primeira partida diplomática, que permitiu aos seus membros mostrarem-se (para o seu público) intransigentes com o adversário. De acordo com a imprensa norte-americana, mais favorável ao governo Biden, o confronto franco abriu caminho para uma competição mais saudável.

O único resultado prático dos dois dias de Anchorage é o anúncio de um futuro grupo de trabalho sino-americano sobre mudanças climáticas. Isso provavelmente é suficiente para Biden, considerando a importância prioritária que ele atribui ao tema. A delegação chinesa não se pronunciou sobre o assunto.

Pela China, além do chanceler Wang Yi, também esteve presente Yang Jiechi, chefe da Comissão de Relações Exteriores do Partido Comunista. Os EUA alinharam o secretário de Estado, Antony Blinken, e o conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, ambos funcionários de longa data e homens proeminentes que já faziam parte do governo Obama.

O campo de batalha escolhido pela nova administração é o dos direitos humanos, e também todas as questões que Pequim considera "internas", mas que para o resto do mundo têm valor internacional.

Os dois membros do governo norte-americano decidiram combinar as duas questões, falando assim da perseguição aos muçulmanos uigures em Xinjiang, aos budistas no Tibete, da violação da autonomia de Hong Kong e, finalmente, das ameaças chinesas a Taiwan, portanto, duas questões (Xinjiang e Tibete) relativas aos direitos humanos e duas de política internacional.

As ações chinesas foram fortemente condenadas nesses eventos: "Cada uma dessas ações ameaça uma ordem internacional baseada em regras que são as únicas que podem preservar a estabilidade global", disse Blinken.

No centro da condenação americana também está a ameaça à segurança cibernética dos Estados Unidos, da qual acusam hackers chineses. E as sanções econômicas que a China está impondo aos aliados dos EUA, como a Austrália.

“É por isso que não são apenas questões internas – declarou o novo secretário de Estado – e nos sentimos obrigados a levantar essas questões hoje”.

A China embarcou em "um ataque aos valores fundamentais", acrescentou Jake Sullivan, "não buscamos o conflito, mas estamos prontos para uma competição acirrada".

O regulamento do primeiro encontro, na presença dos jornalistas, incluiu dois minutos de intervenção cada. Os dois americanos os respeitavam. Assim que Yang Jiechi tomou a palavra, no entanto, ele não parou por 16 minutos; mais um homem do Partido que da diplomacia, Yang começou com um discurso inflamado contra os Estados Unidos, tentando atingi-los e humilhá-los em sua casa: "Acredito que a grande maioria dos países do mundo não reconhece os valores universais defendidos pelos Estados Unidos, nem que as opiniões dos Estados Unidos podem representar a opinião pública internacional."

Quanto à ordem internacional, com base nas regras citadas por Blinken: “Esses países não reconhecem que as regras estabelecidas por um pequeno número de pessoas podem servir de base para a ordem internacional”.

Aproveitando a crise institucional criada nas últimas eleições presidenciais, o comunista chinês também desferiu um golpe na ordem interna americana: “É importante que os Estados Unidos mudem sua imagem e deixem de promover sua democracia no resto do mundo. Mesmo nos Estados Unidos muitas pessoas têm realmente pouca fé na democracia dos EUA”.

E aproveitando todos os protestos antirracistas do Black Lives Matter, Yang (membro de um partido que está deportando milhões de pessoas por razões étnicas e religiosas) chegou ao ponto de derrubar a acusação de direitos humanos: “Esperamos que os Estados Unidos ajam melhor quanto aos direitos humanos. A China tem feito progressos constantes e o fato é que existem muitos problemas nos Estados Unidos no que diz respeito aos direitos humanos, o que também é admitido pelos próprios Estados Unidos. […] E os desafios de direitos humanos que os Estados Unidos enfrentam são profundos. Eles não surgiram apenas nos últimos quatro anos, como o Black Lives Matter. Não surgiram apenas recentemente”.

Blinken tentou aparar o golpe com uma lição de cientista político: um traço distintivo da democracia, em sua opinião, é “reconhecer nossas imperfeições, reconhecer que não somos perfeitos, erramos, recuamos. Mas o que temos feito ao longo de nossa história é enfrentar esses desafios de forma aberta, pública, transparente, não tentando ignorar, não tentando fingir que não existem, não tentando escondê-los debaixo do tapete. E às vezes é doloroso, às vezes é feio, mas cada vez saímos mais fortes, melhores, mais unidos como país”.

Uma lição que poderia convencer estudantes universitários não politizados. Mas isso não deteve a fúria crescente de Yang em nada. Que respondeu: “Bem, foi um erro meu. Quando entrei nesta sala, deveria ter lembrado aos Estados Unidos de prestar atenção no seu tom em nossos respectivos discursos de abertura, mas não o fiz." E “então, deixe-me dizer aqui que, diante do lado chinês, os Estados Unidos não estão qualificados para falar com a China de uma posição de força. E não eram nem mesmo há vinte ou trinta anos atrás, porque essa não é a maneira de lidar com o povo chinês”.

Essa troca franca de palavras resume bem os termos da disputa entre os Estados Unidos e a China, não a partir de agora, mas, de fato, há vinte ou trinta anos, no mundo pós-Guerra Fria. A China busca respeito internacional, quer uma ordem internacional multilateral para impor sua hegemonia na Ásia. A China é, portanto, uma potência revisionista do século 21. Ao contrário, os EUA buscam manter uma posição de hegemonia global para preservar a ordem jurídica criada após a Segunda Guerra Mundial.

O calcanhar de Aquiles dos Estados Unidos não é militar, mas é a falta de segurança em seu próprio sistema. Os últimos quatro anos foram vistos pela China como um declínio no poder americano: a guerra da mídia contra Trump, depois o caos criado pelo Black Lives Matter, a revolução cultural nas universidades, a fúria iconoclasta contra os símbolos da civilização ocidental, o desastre das eleições presidenciais que metade do eleitorado ainda considera roubadas pelo atual presidente.

Todos esses são sinais de fraqueza aos olhos de uma ditadura. E não é só "abordar esses desafios abertamente, publicamente, de forma transparente", como Blinken coloca. Agora é uma guerra civil latente, provocada justamente por aquele mundo progressista, agora no governo (do qual o próprio Blinken faz parte) que fundamenta sua legitimidade na condenação dos valores judaico-cristãos, da tradição ocidental e da história americana. Este é um claro fator de fraqueza, não é uma forma de “emergir mais forte, melhor, mais unidos como país”.

Com que voz os EUA podem defender os direitos humanos de cristãos, budistas e tibetanos na China, quando um forte movimento progressista acredita que os EUA os estão violando em casa, por causa de seu "racismo sistêmico"? Como será possível conter o antiamericanismo no exterior, já que os mais ferozes argumentos antiamericanos são todos formulados e disseminados pelas universidades americanas? Esse será o verdadeiro desafio do governo Biden: antes mesmo da China e de outros adversários internacionais, ele terá de enfrentar a si mesmo.

Stefano Magni, jornalista e ensaísta, é bacharel em Ciências Políticas, autor de “Contro gli statosauri, per il federalismo” e professor associado no curso de Geografia Econômica da faculdade de Jurisprudência da Università degli Studi di Milano.

© 2021 La Nuova Bussola Quotidiana. Publicado com permissão. Original em italiano.

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