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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu muitas críticas após dizer que seu homólogo russo, Vladimir Putin, não será preso se vier ao Brasil para a cúpula do G20 de 2024.
Em março, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu uma ordem de prisão contra o presidente russo devido à deportação de crianças de áreas ocupadas da Ucrânia para a Rússia. Como membro da corte de Haia, o Brasil é obrigado a prender Putin caso ele venha ao país.
Após a repercussão negativa da sua primeira fala, Lula disse que a questão caberia ao Judiciário, mas afirmou que pode rever a participação do Brasil no TPI – ele alegou que os Estados Unidos e a própria Rússia não integram a corte.
Os Estados Unidos assinaram adesão ao Estatuto de Roma, que estabeleceu o TPI, mas não ratificaram essa medida.
Já Moscou foi signatária da fundação da corte em 2000, mas retirou seu apoio a ela em 2016, por entender que “o tribunal não justificou as esperanças colocadas sobre ele”. Essa medida foi tomada dias depois do TPI considerar que a tomada da península ucraniana da Crimeia pela Rússia em 2014 havia sido uma ocupação.
O Brasil assinou sua adesão em 2000 e a ratificou em 2002, durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. Curiosamente, no primeiro mandato de Lula, que agora questiona a participação brasileira no TPI e diz que “nem sabia da existência desse tribunal”, o Brasil incluiu na sua Constituição o compromisso de se submeter à jurisdição da corte por meio de uma emenda constitucional, em 2004.
Foi também no seu primeiro mandato, em 2003, que a juíza brasileira Sylvia Steiner foi eleita para a corte (onde atuou por 13 anos), e Lula enviou uma carta para parabenizá-la.
Além disso, em fevereiro deste ano, Lula disse que o ex-presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) deveria “ser condenado em alguma corte internacional sobre a questão do genocídio por conta da Covid”.
Desde a criação do TPI, alguns países se recusaram a cumprir ordens de prisão da corte, e o caso de maior repercussão ocorreu na África do Sul.
Em junho de 2015, o então ditador do Sudão, Omar Al-Bashir, que havia tido prisão decretada pelo TPI devido a acusações de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade, esteve na África do Sul, país-membro da corte de Haia, mas este não realizou a prisão.
Em processo no próprio tribunal internacional, o então procurador sul-africano Dire Tladi alegou que “não havia nenhum dever, ao abrigo do direito internacional, da África do Sul de prender o líder em exercício de um país não membro [do TPI] como o senhor Omar al-Bashir”.
Em 2017, uma câmara do TPI julgou que a África do Sul “falhou” ao não cumprir a ordem de prisão contra Al-Bashir, mas alegou que não se justificava um encaminhamento do caso à Assembleia dos Estados Membros (ASP, na sigla em inglês) da corte ou ao Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Em comunicado, a câmara justificou que “considerou significativo que a África do Sul tenha sido o primeiro Estado-membro a solicitar ao tribunal uma determinação legal final sobre a extensão das suas obrigações de executar um pedido de prisão e entrega de Omar al-Bashir”.
O colegiado também afirmou que o encaminhamento à ASP ou ao Conselho de Segurança da ONU não garantiria a “cooperação” sul-africana, “à luz do fato de que os tribunais nacionais da África do Sul já concluíram que a África do Sul não cumpriu as suas obrigações ao abrigo do seu arcabouço jurídico interno e que qualquer questão remanescente relativa às obrigações da África do Sul ao abrigo do estatuto [de Roma] foi resolvida pela câmara na decisão”.
Ou seja: na prática, fora uma bronca pública, o TPI não impôs qualquer sanção ao governo sul-africano por se recusar a prender o ditador sudanês.
O promotor Julian Nicholls alegou à época que, se os países-membros se recusarem a cumprir ordens de prisão da corte, “o tribunal não será capaz de cumprir a sua função mais básica: levar a julgamento pessoas acusadas dos crimes mais graves”.
Jurista aponta para possibilidade de impeachment
Eduardo Saldanha, professor de direito internacional da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), afirmou em entrevista à Gazeta do Povo que não cumprir ordens do TPI não gera consequências aos países na própria corte.
“O TPI é um tribunal internacional que tem como principal fundamento a autonomia das nações, ou seja, os países são soberanos e autônomos para cumprir ou não essas decisões. Obviamente, cada país tem uma previsão legal no seu arcabouço jurídico, na sua estrutura normativa, quanto à aplicação das regras do TPI, que pode gerar responsabilização interna”, disse Saldanha. “O Estado somente entrega [alguém que tem contra si uma ordem de prisão] se ele quiser, é o exercício da sua soberania.”
O jurista, entretanto, destacou que o Brasil tem o respeito à jurisdição do TPI como cláusula pétrea na sua Constituição, e uma eventual recusa de cumprir uma ordem da corte pode gerar consequências internas pelo desrespeito à Carta Magna.
“Eu não posso afirmar que o desrespeito a esta regra geraria um [processo por] crime de responsabilidade. Na minha forma de enxergar a nossa Constituição e os crimes de responsabilidade, eu acho que sim, e deveria ser causa para impeachment”, argumentou Saldanha.
“Mas a definição de uma determinada conduta como crime de responsabilidade passa pelo crivo do Congresso Nacional e do Judiciário, não é uma análise meramente jurídica. E lembrando que o STF é uma corte política, e o Congresso nacional, um poder político”, disse o jurista.