Dificilmente o presidente venezuelano Nicolás Maduro será julgado com rapidez por eventuais crimes contra a humanidade pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), mesmo sendo líder de um dos regimes mais violentos do mundo. Isso porque os trâmites na corte são demorados e há fatores políticos e econômicos difíceis de driblar.
O tribunal tem em mãos inúmeras denúncias contra Maduro, principalmente relacionadas a crimes que teriam sido cometidos na Venezuela durante a repressão a manifestações populares a partir de 2017. Mas elas ainda estão na fase de “análise preliminar”, a encargo da promotora-chefe Fatou Bensouda.
Antes de ver quais seriam os próximos passos até a instauração do inquérito e o julgamento, é bom ter em conta que o regime ditatorial venezuelano é considerado o segundo mais repressivo do mundo, segundo levantamento feito pelo centro de estudos americano The Heritage Foundation. Além da repressão aos protestos em 2017, também prendeu milhares de pessoas ligadas ou suspeitas de pertencerem a movimentos oposicionistas. Elas teriam sido submetidas a maus tratos e outros abusos na prisão.
Ao mesmo tempo, movimentos ligados à oposição também são acusados de usarem meios violentos, o que teria resultado em ferimentos e mortes entre integrantes das tropas de segurança de Maduro, o que também está sendo avaliado pelo TPI.
O tribunal dedica-se a julgar crimes considerados de extrema gravidade. “São casos concretos relacionados a genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e agressão”, explica a professora de Direito Internacional da FGV Rio, Paula Almeida.
A Venezuela vive uma crise econômica e política sem precedentes em sua história. Dona de uma das maiores reservas de petróleo do mundo, o país não cresce desde 2013. De lá para cá, a economia encolheu 33,7%, avalia o Fundo Monetário Internacional (FMI). E as expectativas não são nada favoráveis. Para este ano, a expectativa do órgão é de novo encolhimento: 6%. A consultoria venezuelana Ecoanalítica estima que a inflação, no ano passado, tenha batido nos 2.700%.
Primeira fase: análises preliminares
O primeiro passo que Bensouda terá de dar no caso envolvendo o presidente da Venezuela é considerar se a Corte tem legitimidade (pela jurisdição, se é admissível e há interesse da justiça internacional) para investigar os acontecimentos elencados neste caso.
Não há prazo previsto para conclusão. “Os procedimentos de análise só podem ser iniciados se o Estado não tem capacidade ou vontade de investigar os fatos”, destaca Paula Almeida, da FGV Rio.
Há casos que estão nesta fase de análise preliminar desde 2004. O mais antigo em tramitação envolve a Colômbia e está em estudo sobre a sua admissibilidade. Ele deu entrada no Escritório da Promotoria em junho daquele ano. Diz respeito a crimes contra a humanidade cometidos desde junho de 2002 no contexto dos conflitos envolvendo as Forças Armadas, grupos paramilitares e guerrilha. Crimes de guerra realizados a partir de novembro de 2009 também estão sob análise.
Atualmente casos envolvendo outros dez países estão nesta primeira etapa. Entre eles, dois envolvendo países europeus: a Ucrânia e o Reino Unido. No primeiro caso, a análise envolve supostos crimes cometidos durante protestos em 2013 e 2014. O segundo caso, no qual o Iraque está envolvido, analisa o envolvimento de nacionais do Reino Unido em supostos crimes de guerra cometidos durante o conflito e a ocupação do Iraque, entre 2003 e 2008.
Segunda fase: instauração do inquérito
A segunda etapa do Tribunal Penal Internacional para avaliar as denúncias contra o ditador venezuelano seria a instauração do inquérito. Este processo não é automático. Depende da análise do relatório produzido na fase anterior pelo Escritório da Promotoria do TPI por um juiz de instrução.
Segundo a professora Paula Almeida, é feita uma análise acurada do material produzido pela promotoria. “Se o juiz achar que é fundamentado, ele decide abrir o inquérito.”
Nesta fase são feitas investigações mais aprofundadas. Equipes do TPI visitam os locais dos fatos e ouvem testemunhas, entre outros procedimentos.
Também não há prazo para esta etapa. Em um dos casos mais emblemáticos – que envolve Laurent Gbagbo, da Costa do Marfim, o primeiro ex-presidente de um país a ir a julgamento no TPI, acusado de crimes contra a humanidade -, as investigações foram abertas em outubro de 2011. O julgamento iniciou em janeiro de 2016 e ainda está em andamento.
Ele é acusado de envolvimento na violência pós-eleitoral ocorrida entre 2010 e 2011, quando perdeu a eleição. Foi preso em 2011 na Costa do Marfim e enviado para a Holanda, onde fica a sede do TPI. Após investigações, ele foi acusado por homicídio, estupro, tentativa de homicídio e perseguição.
Outro caso relevante em que a fase de inquérito foi mais rápida – três anos entre a abertura das investigações e o julgamento - é o que envolve Ahmad al Mahdi, líder de uma milícia islâmica no Norte da África.
“É a primeira vez que alguém foi condenado por destruir patrimônio histórico e prédios ligados a instituições religiosas”, diz a professora Paula Almeida, da FGV Rio. As ações ocorreram no Mali em junho e julho de 2012.
O caso foi encaminhado pelo Mali ao TPI em julho de 2012 e as investigações foram abertas em janeiro de 2013. Uma ordem de prisão contra al Mahdi foi emitida em setembro de 2015. No mesmo mês, o terrorista foi capturado por tropas do Níger e encaminhado ao Centro de Detenção da Corte, em Scheveningen (Países Baixos). O julgamento aconteceu em agosto de 2016 e, no mês seguinte, ele foi condenado a nove anos de prisão.
Cinco anos foi o período entre as investigações e o início do julgamento do líder da Força Patriótica Para a Libertação do Congo (FPLC), Thomas Lubanga Dyilo. O grupo dele se envolveu em disputas com outras facções armadas durante a guerra civil na República Democrática do Congo (ex-Zaire) entre 2002 e 2003 e recrutava forçadamente menores de 15 anos para participar das hostilidades
As investigações contra Lubanga Dylo começaram em julho de 2004. Em fevereiro de 2006, foi emitida uma ordem de prisão contra ele e, no mês seguinte, o líder da FPLC foi capturado por tropas congolesas. Imediatamente, ele foi transferido para os Países Baixos. O julgamento iniciou em janeiro de 2009 e a condenação a 14 anos de prisão foi dada em 2012. Ele entrou com um pedido de apelação em 2014, mas a sentença acabou sendo confirmada. Em dezembro de 2015 foi repatriado a seu país de origem para cumprir a sentença
Terceira fase: julgamento
Concluído o inquérito e apresentadas as evidências que comprometem o acusado é a vez do julgamento. “Uma característica do TPI é que não há julgamento sem a presença do réu”, diz a professora de Direito Internacional da FGV Rio, Paula Almeida.
Ele teria de ser entregue à jurisdição do Tribunal Penal Internacional e mantido provisoriamente no Centro de Detenção da Corte, em Scheveningen (Países Baixos).
Há vários casos parados no tribunal à espera da captura dos envolvidos. Um deles é o que envolve o ditador sudanês Omar al Bashir, no poder desde 1989. O TPI considera que, enquanto ele não for capturado e encaminhado à sua jurisdição, não há nada que fazer. Duas ordens foram emitidas, uma em março de 2009 e outra em julho de 2010.
As acusações estão relacionadas aos conflitos no Darfur (Oeste do Sudão). Al Bashir é considerado ser colaborador indireto em três tipos de crimes: contra a humanidade (assassinato, extermínio, transferência forçada de população, tortura e estupro); de guerra (ataques à população não envolvida em hostilidades e pilhagem) e genocídio.
A solicitação de investigação de atrocidades no Darfur foi encaminhada pelo Conselho de Segurança da ONU ao Tribunal Penal Internacional em março de 2005 e a promotoria do TPI iniciou a fase de investigações em junho do mesmo ano.