Daniel Ortega não hesitou em colocar seus homens na rua. Em face da marcha de comemoração do primeiro aniversário dos protestos pela sua renúncia, convocados pela oposição para esta quarta-feira (17), o ditador da Nicarágua ordenou um massivo policiamento das ruas de Manágua, a capital do país.
De acordo com jornais locais, 67 pessoas pessoas foram presas, inclusive um jornalista que fazia uma transmissão ao vivo. Os policiais também impediram a concentração dos manifestantes, que ficaram em grupos espalhados pela cidade. A intimidação já era esperada: Ortega havia proibido manifestações anteriormente e desta vez não foi diferente.
Há exatamente um ano, em 18 de abril de 2018, seu governo estava à beira de um colapso. Analistas de geopolítica previam que as manifestações que eclodiram em todo o país a partir daquele dia poderiam ser o início do fim da era Ortega. A situação, porém, vem se desenvolvendo de maneira muito diferente.
No decorrer de um ano, ele usou tudo o que estava à sua disposição para consolidar-se no poder. Prendeu opositores, acabou com protestos usando as forças de segurança do estado e os grupos paramilitares - o que resultou em centenas de mortes -, perseguiu jornalistas, invadiu redações, proibiu manifestações. Tudo isso levou o país a uma crise política e de direitos, que depois desembocou em uma crise econômica.
“O principal efeito da insurreição tem sido uma consolidação da liderança de Ortega dentro do estado e um aumento na repressão”, afirma Benjamin Waddell, professor de sociologia do Fort Lewis College. “A crise econômica que se seguiu à revolta devastou as famílias e as comunidades, o que ajuda a explicar por que tantas pessoas migraram para países vizinhos desde abril passado”, completa.
Os últimos oito anos na Nicarágua foram marcados por um forte crescimento, superior a 4,5% ao ano, mas a grave crise política detonada a partir de abril de 2018 acabou com a fase promissora. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia do país centro-americano voltará a crescer só em 2021 – e a um ritmo bem menor. Para 2019 o órgão internacional prevê uma queda de 5% no Produto Interno Bruto (PIB) do país.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), cerca de 62 mil pessoas deixaram a Nicarágua no último ano - desse total, 55 mil pediram refúgio na vizinha Costa Rica.
Sem uma solução política para a crise, a economia levará mais tempo para se recuperar e os nicaraguenses continuarão deixando o país.
Um ano de manifestações
O descontentamento da população atingiu o ápice após uma reforma do governo que aumentou as contribuições patronais e dos trabalhadores para a Previdência, além de diminuir o valor das aposentadorias. Em 18 de abril de 2018, protestos generalizados pediram a suspensão das mudanças, mas os manifestantes foram atacados por ativistas pró-Ortega nas cidades de Manágua, León e Matagalpa.
A situação se repetiu no dia seguinte. A polícia dissolveu diversos os protestos de universitários com disparos, o que resultou na morte de três jovens.
Numa delicada situação, Daniel Ortega anunciou a revogação do decreto que reformava a Previdência Social. Mas devido à violência com que foram recebidos, os manifestantes já não protestavam mais pela Previdência. No fim de semana que se seguiu, milhares de opositores foram às ruas para pedir a renúncia de Ortega, no poder desde 2007. No fim da noite de domingo, dia 22, a Cruz Vermelha informava que pelo menos 7 pessoas haviam morrido.
O número de vítimas fatais não parou de crescer nos meses seguintes. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foram contabilizados 317 mortos na Nicarágua entre 18 de abril e 30 de julho, incluindo 23 crianças e 21 policiais.
Uma das vítimas foi a brasileira Raynéia Gabrielle Lima. A estudante de medicina de 31 anos foi atingida por um tiro de grosso calibre na noite do dia 23 de julho em Manágua, quando voltava de um plantão do hospital para casa, de carro.
Um vigilante particular e ex-militar chamado Pierson Adán Gutiérrez Solís admitiu ter sido o autor dos disparos e foi condenado a 15 anos de prisão. Ele disse ter agido sozinho, mas confissão é questionada por nicaraguenses devido à presença de grupos armados no país, cujos integrantes têm perfil semelhante ao de Solís. A pena do assassino foi menor do que a recebida por alguns manifestantes, que chegaram a ser condenados a 24 anos de prisão com base em uma lei antiterrorismo aprovada pelo legislativo nicaraguense em julho.
Um dos episódios mais emblemáticos da repressão do regime ocorreu em 13 de julho, quando paramilitares e policiais disparam contra universitários refugiados numa igreja da capital, deixando dois mortos e 16 feridos.
Nova fase de repressão
Quando os confrontos diretos com os manifestantes diminuíram, Ortega atacou em outras frentes.
No fim de setembro, a polícia da Nicarágua proibiu todos os protestos de oposição, passando por cima da Constituição, que garante a liberdade de reunião, manifestação e mobilização pacífica. Na véspera de completar seis meses de protestos, as forças de segurança impediram um protesto da recém criada coalizão Unidade Nacional Azul e Branco (Unab), formada por 43 entidades sociais e políticas, e prenderam 38 pessoas.
“O governo tornou os protestos ilegais e começou a processar os organizadores da oposição com base na lei antiterrorismo. Como resultado, os protestos foram menores e menos frequentes. Isso não reflete sentimentos populares, no entanto. Pelo contrário, é um reflexo do estado opressivo que Ortega moldou à sua vontade nos últimos 12 anos”, afirma Waddell.
Ortega também expulsou a missão da CIDH no país e desde o fim do ano passado vem intensificando sua campanha contra organizações de notícias e grupos sem fins lucrativos que considera simpáticos aos protestos. Um exemplo é o Confidencial, site independente de notícias dirigido por Carlos Fernando Chamorro que foi fechado em 14 de dezembro. Uma semana depois, a emissora de TV a cabo 100% Notícias foi forçada a sair do ar e dois de seus editores foram presos.
Sem vontade de negociar
No final de fevereiro, Ortega e a oposição resolveram voltar à mesa de negociações, dando início a um diálogo de paz. O objetivo era negociar a liberdade dos presos políticos - estimados em 800 pelas organizações de direitos humanos da Nicarágua -, restituir as liberdades individuais, promover uma reforma eleitoral e estabelecer um plano de justiça para as vítimas da repressão.
Desde então, o regime libertou cerca de 250 presos - mas não parou de prender manifestantes. Mesmo sinalizando que está disposto a negociar, as ações de Ortega indicam que ele não está disposto a ceder para a oposição. Waddell lembra que, em março, Ortega concordou em permitir que as pessoas protestassem pacificamente. Dias depois, porém, seu regime prendeu 107 manifestantes.
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O diálogo de paz foi concluído no início de abril, com a promessa de liberação de todos os presos políticos, sob supervisão do Comitê Internacional da Cruz Vermelha e em um prazo de 90 dias. Nenhum acordo foi firmado quanto à reforma eleitoral e à justiça para as vítimas e, embora Ortega tenha concordado em restabelecer o direito às manifestações, isso não vem sendo cumprido pela polícia.
“Desde o início, Ortega vem ganhando tempo e é isso que ele continua fazendo”, avalia Waddell. “Enquanto isso, sua força policial bate, tortura e aprisiona membros da oposição”.