Homem caminha por um parque em Puerto Madero usando uma máscara facial para se proteger do coronavírus, durante a pandemia de Covid-19, em Buenos Aires| Foto: Bigstock/Carolina_J
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A Argentina está vivendo o pior momento da pandemia. Os números de casos, hospitalizações e mortes por Covid-19 no país mostram uma realidade que o próprio presidente, Alberto Fernández, admitiu nesta quinta-feira. De acordo com dados do Ministério da Saúde, foram confirmados nesta sexta-feira 35,4 mil casos de Covid-19 – bem acima do pico da primeira onda da pandemia no país, em outubro do ano passado – e 695 mortes pela doença, elevando o total de falecidos por causa da pandemia a 73,3 mil.

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Esses números colocaram a Argentina entre os cinco países com mais infecções e óbitos diários por Covid-19, segundo a plataforma Our World In Data. Considerando-se o número de casos proporcional à população, a Argentina já é o país da América do Sul com a maior taxa de infecções acumuladas desde o início da pandemia.

Também são preocupantes os dados sobre hospitalizações. Na média geral do país, as unidades de terapia intensiva estão com ocupação de 72,6%, mas a quantidade de pessoas internadas está aumentando rapidamente. Profissionais de saúde relatam que muitos pacientes que chegam aos hospitais em estado grave morrem após uma semana internados. Em algumas partes do país, como Neuquén, há relatos de escassez de oxigênio e de leitos.

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“A Argentina está em uma situação de colapso sanitário. Nossos hospitais estão lotados e o elo mais fraco da rede são as unidades de terapia intensivas, que não contam com recursos tecnológicos e humanos, insumos ou medicamentos”, disse ao jornal britânico The Guardian Arnaldo Dubin, chefe da UTI do hospital privado Otamendi, em Buenos Aires, afirmando também que algumas regiões da Argentina relatam uma taxa de mortalidade de 75% na terapia intensiva.

Nesta quinta-feira o país registrou um número recorde de internações em UTI desde o começo da pandemia: 6.027 pacientes. A taxa de positividade dos testes de Covid-19 também está alta: 35%.

“Estamos vivendo o pior momento desde o início da pandemia”, disse Fernández durante um discurso transmitido nesta quinta-feira. “Existem municípios e províncias que hoje têm o seu sistema de saúde no limite, com hospitais públicos e privados que estão a ponto de não poderem responder”.

Quarentena

Diante deste cenário, o presidente argentino anunciou uma série de medidas restritivas que afetarão quase todo o país – mais de 170 jurisdições. Por nove dias, de sábado (22) a domingo (30), pessoas que vivem em áreas de alto risco epidemiológico só poderão sair de casa entre 6h e 18h, por razões de necessidade e nas proximidades de onde vivem. Atividades econômicas, recreativas, religiosas e educativas serão suspensas e todo tipo de aglomeração está proibida. Os comércios essenciais vão funcionar e a entrega a domicílio também estará permitida.

O anúncio de Fernández pegou muitos argentinos de surpresa já que, dois dias antes, ele havia informado que “as pessoas não resistiriam” a uma quarentena mais restritiva como a que foi imposta no começo da pandemia de Covid-19 no país, em março do ano passado.

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Apesar disso, Fernández contou com o apoio da maioria dos líderes regionais ao declarar a quarentena restritiva que, diante de um feriado prolongado, afetará apenas três dias úteis. Até mesmo o prefeito de Buenos Aires, que dias atrás tinha travado – e ganhado – uma batalha judicial contra o governo federal para que as aulas presenciais das escolas da cidade não fossem suspensas, concordou com a necessidade de regras de circulação mais rígidas neste momento em que a pandemia está avançando no país. A população também parece disposta a cumprir com as novas exigências – ao menos pelo período de nove dias.

Ainda assim, houve críticas à gestão da pandemia pelo governo de Alberto Fernández.

“Dada a situação, restrições são necessárias. Mas não vamos tropeçar na mesma pedra de novo: as restrições, sem busca ativa de casos com mais exames, campanhas de conscientização e melhor vacinação, se esgotam rapidamente. Já vimos esse filme e sabemos como termina”, disse Adolfo Rubinstein, ex-ministro da Saúde da Argentina, referindo-se ao grande aumento de casos e mortes por Covid-19 que ocorreu no país no ano passado mesmo após meses de quarentena restritiva.

Pressão por vacinas

Além do desastre social e econômico da “maior quarentena do mundo”, a escassez de vacinas contra Covid-19 na Argentina é apontada como uma das grandes falhas do governo Fernández na gestão da pandemia. Até esta quinta-feira, 10,7 milhões de doses de vacinas haviam sido aplicadas, das 12,6 milhões que chegaram ao país. Segundo dados do Ministério da Saúde, 8,5 milhões de pessoas foram vacinadas com a primeira dose de uma das três vacinas que fazem parte da campanha de imunização na Argentina – da Sinopharm, da AstraZeneca, além da Sputnik V. Isso representa 18% da população.

Contudo, poucas pessoas receberam a segunda dose da vacina: apenas 2,2 milhões, ou 4,7% da população. Segundo os dados do governo, apenas um em cada quatro argentinos vacinados com a primeira dose já recebeu a segunda. Essa diferença se dá justamente pela escassez de vacinas no país. Em março, o governo decidiu retardar a aplicação da dose complementar de todas as vacinas em 12 semanas, com o objetivo de vacinar a maior quantidade de pessoas – embora não haja estudos que comprovem a eficácia da vacina da Sinopharm com a aplicação da primeira dose, nem análises sobre os efeitos que teria esse atraso na aplicação da segunda dose da Sputnik V e do imunizante da Sinopharm.

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Diante das críticas e do receio dos argentinos que ainda não foram imunizados totalmente, no fim de abril, o governo argentino reservou todas as doses da Sinopharm que chegaram ao país para completar o esquema vacinal. Contudo, a situação da Sputnik V, produzida pelo instituto russo Gamaleya, é um pouco mais complexa. Diferente das vacinas da AstraZeneca e da Sinopharm, a segunda dose da Sputnik V tem componentes distintos da primeira. A Rússia, até o momento, enviou à Argentina apenas um milhão de doses complementares – um quinto do total de primeiras doses do imunizante que chegaram ao país.

"Estamos trabalhando com a Federação Russa para começar a receber o segundo componente e completar os calendários de vacinação nas pessoas que estão completando esses três meses", disse a ministra da Saúde, Carla Vizzotti, há algumas semanas.

Em seu discurso nesta quinta-feira, Fernández disse que a Rússia deve acelerar o envio da Sputnik V à Argentina e que está conversando com o governo chinês para comprar mais doses da Sinopharm. O presidente também disse que mais 4 milhões de doses – provavelmente da AstraZeneca – devem chegar ao país para acelerar a vacinação, mas não deu detalhes.

Um levantamento do jornal argentino Clarín, publicado nesta sexta-feira (21), mostrou que o governo argentino pagou o equivalente a 54% das 49 milhões de vacinas anti-Covid contratadas, mas que, até agora, só recebeu 25% delas. O principal problema, segundo o jornal, está nos atrasos da AstraZeneca, cujos ativos do imunizante são produzidos no país, mas o envase é feito em uma fábrica da farmacêutica no México. As primeiras doses recebidas pelo país foram produzidas na Índia – Covishield – mas as autoridades indianas restringiram as exportações de vacinas fabricadas no país devido à crise sanitária local.

A vacina da Pfizer, embora tenha sido a primeira aprovada pela agência reguladora argentina e tenha sido testada no país, não foi comprada pelo governo argentino, o que gerou muitas críticas a Fernández. Na época, a Casa Rosada alegou que a farmacêutica americana tinha feito “exigências demais” e que, por isso, não fechou um acordo para compra de três milhões de doses.

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“A Pfizer nos pediu uma Lei de Vacinas e nós atendemos. Agora nos pedem uma outra lei para evitar responsabilidades legais se as vacinas causarem danos físicos. Não daremos essa imunidade jurídica, eles são responsáveis pelas vacinas”, disse Fernández no fim do ano passado. Agora, diante dos atrasos nas entregas da Sputnik V e AstraZeneca, Fernández anunciou que voltou à mesa de negociações com a Pfizer.

No meio da campanha de vacinação, o governo kirchnerista também se viu envolto em um grande escândalo nacional, batizado de “sala de vacinação VIP”, no qual funcionários do alto escalão da administração, seus familiares e amigos, estavam desviando doses e “furando a fila” da imunização contra Covid-19. O episódio terminou com a renúncia do então ministro da Saúde, Ginés González García, representando um grande choque político para Fernández.

Blindando as restrições

O governo de Fernández também está se articulando para evitar que decisões da Suprema Corte de Justiça do país interfiram nas restrições impostas pelo governo federal, como ocorreu recentemente na briga judicial entre a Casa Rosada e a Cidade Autônoma de Buenos Aires. O governo apresentou ao Congresso, na semana passada, um projeto de lei que estabelece parâmetros epidemiológicos por meio dos quais o Executivo Nacional poderá tomar decisões sobre medidas restritivas de nível nacional durante a pandemia de Covid-19 – o que até agora vem sendo feito por meio de decretos.

A proposta passou pelo Senado nesta quinta-feira e foi enviada à Câmara dos Deputados. O principal bloco da oposição, Juntos por el Cambio, votou contra o projeto por considerá-lo um avanço do poder Executivo Nacional sobre a autonomia das províncias e da Cidade de Buenos Aires. Um dos pontos mais sensíveis da lei é que, se aprovada, as aulas presenciais poderiam ser automaticamente suspensas em áreas consideradas de grande risco de transmissão de Covid-19, sem que os governadores ou o prefeito de Buenos Aires sejam consultados previamente.

“O problema da saúde não se resolve com esta lei. Para que seja necessária uma gestão eficiente, é necessário gerir vacinas para a sociedade”, disse o senador da oposição Luis Naidenoff.

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