A Argentina não figura mais entre os países que estão acusando a ditadura de Nicolás Maduro de cometer crimes de lesa-humanidade em um processo que tramita no Tribunal Penal Internacional (TPI). O governo do presidente Alberto Fernández enviou, em 25 de março, uma carta à procuradora de Haia, Fatou Bensouda, pedindo a retirada de todos os esforços iniciados pela Argentina no tribunal contra a Venezuela. A informação, porém, só veio a público nesta quarta-feira (26), em uma reportagem da agência RT (Russia Today), que posteriormente foi confirmada por diplomatas argentinos.
A retirada do apoio ao processo contra Maduro ocorreu no mesmo momento em que a Argentina saiu do Grupo de Lima, alegando que "isolar a Venezuela não resultou em nada". "Mais uma vez, reiteramos que a melhor forma de ajudar os venezuelanos é facilitando um diálogo inclusivo que não favoreça nenhum setor em particular, mas favoreça eleições aceitas pela maioria com controle internacional", afirmou o Ministério das Relações Exteriores da Argentina na época.
O governo de Fernández está revertendo consistentemente as políticas de pressão ao regime Maduro que vinham sendo empregadas por seu antecessor, Maurício Macri, até o fim de 2019. A primeira delas: deixou de reconhecer Juan Guaidó como presidente da Venezuela logo no começo de seu mandato, negado as credenciais diplomáticas à representante de Guaidó no país.
Sob a nova administração, a Casa Rosada também se negou a assinar declarações criticando a ditadura venezuelana.
Em dezembro, logo após a realização das eleições parlamentares na Venezuela, a Argentina se absteve de votar uma resolução da Organização dos Estados Americanos (OEA) que rechaçou o pleito – em que 80% dos venezuelanos se recusaram a votar – e o considerou fraudulento. A eleição também foi condenada pela União Europeia.
Já em março, o governo Fernández deixou de assinar um documento do Grupo de Contato Internacional para a Venezuela – do qual a Argentina ainda faz parte – que rejeitava a decisão da ditadura chavista de expulsar da Venezuela a embaixadora da União Europeia.
Mais recentemente, o próprio presidente argentino deu declarações que enfureceram a oposição ao regime chavista. Em uma entrevista de rádio, Fernández disse que o problema de direitos humanos da Venezuela "foi pouco a pouco desaparecendo" – apesar de haver centenas de presos políticos no país e denúncias de centenas de execuções extrajudiciais, para citar apenas dois exemplos das violações dos direitos humanos cometidas atualmente pela ditadura. "[A declaração] significa uma ofensa para as dezenas de milhares de vítimas da ditadura criminosa de Maduro", disse Elisa Trotta, representante de Guaidó na Argentina, na ocasião.
É verdade que o governo argentino, no ano passado, apoiou o informe da Alta Comissária das Nações Unidas, Michelle Bachelet, que denunciou as violações dos direitos humanos na Venezuela. Na época, a diplomacia argentina destacou a necessidade de instalar "uma missão permanente da Alta Comissária em Caracas" – o que até hoje não aconteceu por objeção de Maduro. A decisão, porém, gerou desconforto entre o núcleo mais duro do kirchnerismo, resultando, inclusive, na renúncia da embaixadora argentina na Rússia, Alicia Castro, que disse não estar de acordo com a "atual política de relações exteriores" do governo Fernández.
Processo contra Maduro no TPI
O processo contra a ditadura chavista que atualmente tramita em Haia foi iniciado em 2018, após denúncia da Organização de Estados Americanos (OEA) e de governos como os do Chile, Colômbia e Canadá. De acordo com a diplomacia argentina, a retirada do apoio argentino a esta ação legal contra Maduro não acarretará em prejuízos ao processo, que está em fase preliminar. Contudo, as críticas à decisão do governo argentino vieram logo em seguida.
Santiago A. Canton, ex-secretário executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), disse que "a retirada da Argentina no caso contra a Venezuela no TPI significa que o governo não se preocupa com os desaparecimentos, nem com a tortura, nem com as violações de mulheres, confirmadas na ação".
"Quando a defesa dos direitos humanos se mistura com a política, só se conseguem mais desaparecimentos, mais torturas, mais violações, etc. Com esta decisão, o governo argentino apoia a impunidade e incentiva mais violações", afirmou em suas redes sociais nesta quarta-feira (26), lembrando também que os países "são fiadores coletivos da defesa e proteção dos direitos humanos". "É deplorável que este governo coloque alianças internacionais efêmeras acima da dignidade do ser humano", concluiu Canton, que foi um dos especialistas convocados pela OEA para apresentar um relatório sobre violações dos direitos humanos na Venezuela.
No fim do ano passado, depois de dois anos de análises preliminares, a Promotoria do Tribunal Penal Internacional (TPI) falou pela primeira vez sobre o cometimento de crimes de lesa-Humanidade na Venezuela desde, pelo menos, 2017, quando a repressão do regime aos protestos da oposição deixou pelo menos 125 mortos entre abril e julho. De acordo com a promotoria, há "fundamentos razoáveis" para acreditar nas denúncias feitas por opositores, países-membros e organizações de direitos humanos sobre uso excessivo da força para dispersar manifestantes, prisões arbitrárias e maus-tratos e tortura de encarcerados.
Maduro está preparando sua defesa e será representado por Gladys Gutiérrez, ex-magistrada do Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela. No TPI, a promotora Fatou Bensouda será substituída nos próximos dias pelo advogado britânico Karim Khan.
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