Algo verdadeiramente prodigioso acaba de acontecer em Cuba. Pela primeira vez nos 62 anos desde que a dinastia Castro transformou a ilha em uma distopia totalitária, os cubanos tomaram as ruas, de uma ponta a outra da ilha, denunciando seu regime repressivo e clamando por liberdade.
Os manifestantes puderam ser vistos no YouTube e nas redes sociais, gritando "liberdade", "abaixo a ditadura" e "abaixo o comunismo" ritmicamente, como se fossem orações de peregrinos resolutos.
Eles também puderam ser ouvidos gritando um desafio para seus governantes: “não temos medo”. Esse canto não se parece em nada com uma oração. É uma provocação, um grito de guerra, um grito rebelde. E vem principalmente de jovens cubanos, netos e bisnetos da chamada Revolução.
Qualquer pessoa que tenha vivido em uma sociedade livre e aberta, acostumada a frequentes demonstrações de descontentamento com o status quo, onde nenhum dos participantes disso seja espancado ou jogado na prisão, não consegue nem imaginar a coragem ou o desespero necessários para expressar a dissidência em uma ditadura totalitária como a de Cuba. Nem ideia, de verdade.
Você tem de viver em um lugar assim, onde uma porcentagem excessiva do orçamento do país é dedicada a manter os olhos do Big Brother [o Estado] fixos em você, a fim de avaliar a magnitude do destemor e do desespero necessários para soltar a língua na rua ao lado de seus vizinhos.
Esses protestos estão entre as provas mais dramáticas já oferecidas do fracasso da ditadura tropical, que se autodenomina uma “Revolução” há seis longas décadas e que levou 20% de seu povo ao exílio.
Inúmeras promessas para um futuro melhor foram feitas durante esse tempo pela junta militar que governa Cuba desde os dias em que os carros tinham rabos de peixe e as principais músicas nas paradas dos EUA eram "Jailhouse Rock" de Elvis Presley e "Volare" de Domenico Modugno.
Bem, o futuro está aqui, e os jovens podem ver claramente que todas essas promessas acabaram por ser mentiras.
Agora, aqueles que deveriam colher os benefícios de décadas de sacrifício, abnegação e obediência inquestionável exigida pelo Estado estão nas ruas, gritando para seus mestres - e para o mundo - que estão cansados de viver uma mentira.
A resposta dos oligarcas de Cuba tem sido previsível. Imediatamente, o acesso à Internet foi interrompido - e ainda está desativado três dias depois.
Soldados, policiais e turbas de bandidos incitados pelo carrancudo ditador do país, Miguel Díaz-Canel, atacaram os manifestantes, disparando contra eles, espancando-os com porretes e empurrando o máximo que puderam para dentro de veículos que os levaram direto para a prisão ou simplesmente os fizeram desaparecer.
Díaz-Canel encenou um contra-protesto rodeado por um esquadrão de guarda-costas e membros corpulentos da classe dominante que não teve escolha a não ser aceitar seu convite para este evento.
Ele também apareceu na televisão e convocou todos os “revolucionários e comunistas” a “combater os mercenários pagos pelo governo americano”, tomar de volta as ruas deles e “proteger” a sagrada “Revolução”.
Causas da dissidência
Essa súbita erupção de dissidência destemida foi causada por uma tempestade perfeita de calamidades, todas as quais revelaram a grande mentira da chamada Revolução como nenhuma outra crise o fez antes.
Ultimamente, a vida em Cuba se tornou mais insuportável do que nunca para quase todos os cubanos, exceto para aqueles que governam o lugar. A crise se deve a uma longa série de erros graves e catástrofes.
Há muitos para listar no total, mas aqui estão alguns: a perda da renda da Venezuela, uma economia em colapso, dívida externa gigantesca, uma colheita de açúcar desastrosa, inflação descontrolada, uma praga que está se intensificando em vez de diminuir, um sistema de saúde em colapso, falta de medicamentos, falta de alimentos, falta de água, longas filas e prateleiras vazias em todas as lojas, falta de eletricidade e aumento da repressão.
Esqueça as sanções dos Estados Unidos ou o chamado embargo que a junta militar cubana e muitos meios de comunicação do mundo culpam pela crise atual.
Esses são fatores sem importância, um engodo de transferência de culpa, habilmente manipulado pelos oligarcas por muito tempo para desviar a atenção de sua própria inépcia abjeta e dos defeitos congênitos do comunismo que eles abraçaram e impuseram a todos os cubanos.
Quando se trata de atribuir uma culpa, é muito mais merecida aos milhares de turistas convidados a voltar aos resorts do apartheid em Cuba de maneira prematura e irresponsável, à medida que novas variedades de coronavírus estavam surgindo.
Esses estrangeiros que buscam as "férias dos sonhos" são um componente significativo da tempestade perfeita deste ano, mas, graças ao apartheid do país, a maioria dos cubanos não sabe de sua presença na ilha, ou das infecções transmitidas aos funcionários dos resorts, que então levaram o vírus para suas casas e vizinhanças.
Outro componente significativo da tempestade perfeita deste ano é o fato inegável de que a dinastia Castro desapareceu. Fidel está morto, suas cinzas escondidas em um monólito que parece um ornamento do filme Flintstones.
Raúl escapou do palco aos 90 anos, sem nenhum aplauso, muito menos uma aclamação pública. E depois de uma grande confusão de ministros no mais recente Congresso do Partido Comunista, o homem que ficou no comando - aparentemente - é Miguel Díaz-Canel, uma figura corpulenta sem um pingo de carisma que parece incapaz de dizer algo quase inteligente ou inspirador.
Assumir a persona do Big Brother e vender a Big Lie [Grande Mentira] são desafios além de sua compreensão, então, apesar de toda a retórica que ele e seus ministros vomitam sobre a "continuidade" da chamada Revolução, os cubanos podem ver que ele realmente não herdou nenhum manto, mas está realmente nu, por assim dizer, como o personagem principal do conto de Hans Christian Andersen, "As roupas novas do imperador".
Só podemos esperar e rezar neste momento para que ele se mostre tão inepto na repressão quanto é em inspirar confiança.
Esses protestos não são realmente sobre a pandemia ou a escassez falsamente atribuída à política externa dos EUA. O resultado final é que esses manifestantes sabem que a causa última de sua angústia é a falta de liberdade em todas as esferas da vida, o que não é novidade.
Assim, os jovens que sentem que têm mais a perder ao permanecer calados, sem nada além de um futuro sombrio no horizonte, foram para as ruas como ninguém se atreveu a fazer até agora em tamanha escala.
Como disse ontem John Suarez, diretor do Centro para uma Cuba Livre: “O que está causando problemas em Cuba é o bloqueio interno que o regime impôs aos cubanos, e é por isso que os cubanos estão protestando contra o regime. Eles não estão na frente da Embaixada dos EUA protestando contra o embargo dos EUA, eles estão protestando contra o governo porque sabem quem é o responsável pelo que estão sofrendo. Não é um acidente.”
Carlos Eire é professor de História e Estudos Religiosos na Universidade de Yale.