E se, durante 40 anos, as escolas e mesquitas administradas pelo governo batessem sempre na mesma tecla – que o cérebro das mulheres é menor que o dos homens e não consegue processar informações complexas, que é vergonhoso para as mulheres interagir publicamente com estranhos, que sentar-se atrás do volante de um carro pode causar defeitos congênitos ao filho de uma mulher grávida?
E se o governo de repente voltasse atrás?
Há nove meses, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman anunciou que ia conceder às mulheres o direito legal de dirigir, mas muitos súditos ainda tentavam processar a nova realidade em 24 de junho, o primeiro dia do fim de uma das proibições mais sagradas da monarquia absolutista.
Não se sabe ao certo quantas sauditas foram às ruas para celebrar sua nova liberdade. O governo anunciou que centenas de mulheres teriam suas carteiras até 24 de junho. Atrasos burocráticos impediram que milhares de outras tivessem sua licença em mãos no dia histórico.
Desafio cultural
Mesmo assim, muita gente nesta nação de 33 milhões de habitantes lutava contra a ansiedade em relação à nova liberdade, tanto famílias que nunca aceitaram o estereótipo de que as mulheres deveriam ficar fechadas em casa, quanto aqueles que sinceramente acreditavam no que lhes havia sido ensinado desde a infância.
Em famílias de classe média alta, cujas filhas foram para o exterior para estudar e aceitaram oportunidades de trabalho que também são relativamente novas no reino, a apreensão é basicamente psicológica. Várias jovens em Riad e Jidá, as duas maiores cidades do país, não planejam tirar carteira de motorista, embora tenham habilitação dos Estados Unidos ou de outros países onde viveram e estudaram.
A mensagem que ouvem dia após dia na escola é que as meninas são como doces – precisam ser embrulhadas para proteger sua doçura. Sair à rua, quanto mais acompanhadas por homens estranhos, significa a remoção de uma camada de proteção enraizada na mente de ambos os gêneros.
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Por isso não surpreende que os jovens adultos compartilhem uma preocupação com seus pais: o que aconteceria se uma jovem motorista fosse parada por um policial? Ela seria assediada, molestada ou algo pior? "Eu não gostaria de fazer história como a primeira pessoa na Arábia Saudita a passar por isso. Os homens aqui têm uma mentalidade muito ruim. Quer dizer, pense em como eles foram educados durante tanto tempo", disse Noura, 20 anos, estudante de química em Riad.
Assim, há razões práticas para não assumir o volante imediatamente, se é que isso um dia vai acontecer. Em Jidá, cidade portuária no Mar Vermelho, onde os buracos nas ruas são tão grandes que viraram tema de piadas nacionais, algumas jovens de 20 e poucos anos, que viajam para o exterior e se consideram politicamente liberais, disseram que seria uma tarefa árdua dirigir pelas vias precárias.
Dificuldades para os mais pobres
Famílias no outro extremo do espectro socioeconômico, aquelas que lutam pelo sustento, dizem que a opção de dirigir permanece tentadoramente fora do alcance, porque não podem pagar por ela.
Musallam al-Falih, um rapaz desempregado que, junto com o primo, passou uma tarde recente em um shopping em Riad, disse que nenhuma parente sua começaria a dirigir. Sua família foi para a capital há uma geração, saindo da aldeia, Al Khorma, onde viviam da agricultura. Como em qualquer comunidade agrícola, todo par de mãos era necessário no dia a dia. As mulheres lá dirigiam por necessidade e os policiais locais, que eram seus primos ou sogros faziam vistas grossas.
Porém, na vida atual na capital saudita, onde o dinheiro é apertado e o tempo livre é escasso, dirigir não faz muito sentido para as mulheres de sua família. O curso de direção, que é necessário para tirar a carteira, custa quase três mil rials, ou aproximadamente US$ 800, o salário médio de um professor iniciante. "Quem tem todo esse dinheiro?", perguntou al-Falih.
Tempo de mudanças
A geração atual de sauditas cresceu em um momento no qual os governantes anteriores deram poderes aos clérigos, que ensinavam uma vertente rígida do Islã conhecida como wahabismo, praticado restritamente em outros países árabes ou islâmicos. Enquanto esses lugares há muito aceitam mulheres em papéis proeminentes na política, negócios e sociedade, muitos sauditas não o fazem.
Outro aspecto dessa vertente do Islã é a crença de que os cidadãos sauditas devem obediência absoluta ao seu governante, sem questionar sua autoridade.
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O rei saudita e seu filho, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman, se aproveitam dessa mentalidade para conquistar apoio e aceitação para seus novos decretos, apesar de sua desconexão radical com as leis do passado recente. Outras mudanças introduzidas no ano passado são o direito de tocar música em público e o fim da segregação de gênero em eventos esportivos e locais de entretenimento.
Abdullah, taxista em Riad, usa um thobe, o longo traje branco masculino, e um turbante no estilo favorecido por conservadores religiosos. Ele disse que aceitaria a nova lei que permitia que as mulheres dirigissem porque fora introduzida pelo rei, mas disse que não ia dar permissão para que as mulheres de sua família dirigissem – e elas nem querem isso. "O que a nossa autoridade diz, eu obedeço", disse ele, acrescentando: "Estou feliz que os outros tenham essa escolha, mas nossa vida vai muito bem do jeito que está".