Membros das forças de segurança sírias penduraram Muhannad Ghabbash pelos pulsos e o deixaram assim durante várias horas; bateram nele até tirar sangue, deram-lhe choques elétricos e lhe enfiaram o cano de uma arma na boca.
O estudante de direito de Alepo já confessara repetidas vezes seu maior crime: organizar protestos pacíficos contra o governo. Mesmo assim, a tortura continuou por mais doze dias, até ele redigir uma confissão fictícia de ter planejado um atentado a bomba. Segundo ele, isso foi só o começo.
De lá, foi levado para uma prisão lotada, na base aérea de Mezze, em Damasco, onde conta que os guardas penduravam os detentos em uma cerca, nus, e os encharcavam com água gelada nas noites mais frias. Segundo seu relato e o de outros prisioneiros, para entreter os colegas durante o jantar, um oficial que se autodenominava Hitler os forçava a imitar cães, burros e gatos – e surrava os que não conseguiam latir, zurrar ou miar corretamente.
Em um hospital militar, ele descreve ter visto um enfermeiro estapeando um amputado que implorava por analgésicos. Em outro presídio, contou 19 companheiros de cela mortos em um único mês, doentes, torturados e negligenciados. "Tive sorte", afirma Ghabbash, de 31 anos, que sobreviveu a um ano e meio de detenção, até que um juiz foi subornado para libertá-lo.
Abuso sistemático
Para garantir a vitória na guerra que já dura oito anos, o ditador Bashar al-Assad conta com um sistema secreto, em escala industrial, de detenções arbitrárias e tortura nos presídios, vital para seu sucesso. Enquanto as Forças Armadas sírias, com o apoio da Rússia e do Irã, disputam território com os rebeldes armados, o governo ataca cruelmente os civis, jogando centenas de milhares deles em masmorras imundas, onde muitos são torturados e mortos.
Segundo a Rede Síria por Direitos Humanos, grupo de monitoramento independente que mantém os registros mais rigorosos, quase 128 mil pessoas nunca saíram, e presume-se que estejam mortas ou ainda sob custódia; cerca de 14 mil foram "mortas sob tortura". Muitos prisioneiros morrem em condições tão terríveis que uma investigação da Organização das Nações Unidas (ONU) descreveu o processo como "extermínio".
Agora, mesmo com a guerra perdendo fôlego, o resto do mundo dispersando a atenção e os países começando a normalizar as relações com a Síria, o ritmo de novas prisões, torturas e execuções só faz aumentar. Os detentos conseguiram enviar clandestinamente o alerta de que centenas estão sendo enviados para Saydnaya, presídio onde são realizadas execuções sumárias; alguns que conseguiram sair relatam um ritmo mais intenso de eliminação.
O governo nega a existência de abuso sistemático; entretanto, memorandos oficiais recém-descobertos mostram que funcionários que se reportam diretamente ao presidente não só tinham conhecimento das atrocidades, como ordenaram detenções em massa.
Os investigadores de crimes de guerra da Comissão Internacional para a Justiça e a Responsabilidade, ou CIJA, descobriram documentos ordenando repressão violenta e discutindo mortes no cárcere, todos assinados por membros do alto escalão do governo, inclusive do Comitê Central de Gestão de Crises, que se reporta diretamente a Assad.
Um memorando da inteligência militar reconhece mortes causadas por tortura e pelas péssimas condições. Outros relatam mortes de detentos, alguns inclusive identificados entre as fotos dos cadáveres que um policial militar desertor tirou às escondidas. Dois autorizam tratamento "duro" para detentos específicos. Um, assinado pelo chefe da inteligência militar, Rafiq Shehadeh, exige que os oficiais garantam "imunidade judicial" para seus homens.
Em entrevista concedida em 2016, Assad levanta dúvidas sobre a veracidade dos relatos dos sobreviventes e das famílias dos desaparecidos. "Quaisquer abusos que possam ter ocorrido foram erros isolados e inevitáveis de guerra", afirmou ele.
Ao longo de sete anos, o The New York Times entrevistou dezenas de sobreviventes e familiares de detentos mortos ou desaparecidos, analisou documentos oficiais e examinou centenas de páginas de depoimentos de testemunhas. A conclusão é a de que os relatos dos sobreviventes batem com os de outros presos nas mesmas prisões, embasados pelos memorandos do governo e pelas fotos tiradas às escondidas dentro delas.
Impunidade
Há pouca esperança de responsabilizar qualquer autoridade dos altos escalões em breve – mas há um movimento incipiente para buscar justiça por meio dos tribunais europeus. Promotores franceses e alemães prenderam três ex-oficiais de segurança e emitiram mandados internacionais de prisão para o chefe do Serviço Nacional de Segurança, Ali Mamlouk, o diretor de inteligência da Força Aérea, Jamil Hassan, e outros pela tortura e morte na prisão de cidadãos ou residentes desses países.
E, no entanto, Assad e seus cupinchas continuam no poder, a salvo da prisão, protegidos pela Rússia com seu poderio militar e seu veto no Conselho de Segurança da ONU. Ao mesmo tempo, os países árabes começam a restaurar as relações com Damasco e as nações europeias estão pensando em fazer o mesmo.
Essa impunidade não é só um problema interno; sem reformas na segurança, é pouco provável que os cinco milhões de refugiados sírios no Oriente Médio e na Europa voltem à terra natal para se arriscar a uma prisão arbitrária. "Justiça não é um luxo da Síria; é um problema mundial", afirmou o advogado de direitos humanos sírio Mazen Darwish, em Berlim, onde vem auxiliando a promotoria local.
A prisão e a tortura de vários adolescentes, em março de 2011, pela pichação de críticas a Assad, levaram os sírios a entrar para a onda de levantes que, na época, varria os países árabes. Manifestações em protesto ao tratamento dado aos garotos se espalharam a partir de sua cidade, Daraa, levando a mais prisões, o que gerou mais passeatas.
Uma enxurrada de detidos em toda a Síria se juntou aos dissidentes na Prisão de Saydnaya. "São lixeiros, camponeses, engenheiros, médicos, gente de todas as classes", descreve Riyad Avlar, cidadão turco que passou vinte anos preso, depois de ser detido em 1996, aos 19 anos, por entrevistar os sírios sobre o massacre na prisão.
"Na verdade, as torturas aumentaram; os recém-chegados eram agredidos sexualmente, tinham os genitais expostos e atacados e eram forçados a bater e até a matar uns aos outros."
Ninguém sabe quantos sírios passaram pelo sistema desde então; grupos ativistas calculam que o número possa chegar a até um milhão. Nas contas da Rede Síria, são 127.916 pessoas, número provavelmente bem abaixo da realidade, já que reflete as prisões denunciadas por familiares e outras testemunhas, e não inclui aqueles que foram soltos depois ou tiveram as mortes confirmadas.
Devido ao nível de confidencialidade do governo, ninguém sabe quantas pessoas morreram sob custódia, mas milhares estão registradas em memorandos e fotos. Um ex-oficial da Polícia Militar, identificado somente como Caesar para proteger sua segurança, saiu da Síria com fotos de pelo menos 6.700 cadáveres, magérrimos e feridos, que chocaram o mundo quando começaram a circular, em 2014.
O relato de Ghabbash
Ghabbash, o organizador dos protestos de Alepo, sobreviveu à tortura em pelo menos doze prisões, o que o torna um "guia" do sistema, como ele próprio define. Sua odisseia começou em 2011, quando tinha 22 anos.
Ele conta que era regularmente pendurado, além de ter apanhado e ter sido chicoteado em quartéis e sedes de agências de inteligência – até março de 2012, quando foi levado para a base aérea de Mezze.
A essa altura, segundo seu relato e os de vários sobreviventes, havia um sistema de transporte em escala industrial entre os presídios. Os detentos eram torturados nas pernas durante a viagem. Sua nova cela tinha uma área de 3,6 m x 2,7 m, tão lotada que os detentos tinham de dormir em turnos.
Fora dela, no corredor, havia um homem de olhos vendados e algemado. Era Darwish, o advogado de direitos humanos, detido por bater boca com um juiz sobre as leis que garantem julgamentos justos no país. Mais tarde, ele descreveu sua punição: "Fui preso nu, sem direito a água ou descanso, forçado a beber minha própria urina."
Depois que foi libertado, em 2013, Ghabbash foi para Gaziantep, na Turquia, onde administra programas humanitários e de defesa dos direitos das mulheres para refugiados na última região dominada pelos rebeldes na Síria.
Recentemente, Darwish prestou depoimento sobre a prisão, em audiência num tribunal francês, em um caso de pai e filho sírio-franceses que morreram ali, o que ajudou os promotores a obter mandados de prisão para Mamlouk, responsável pela segurança, Hassan, o chefe da inteligência da Força Aérea, e o diretor de Mezze.
"A ameaça de julgamento e prisão é o único instrumento que resta para salvar os detentos. Dá motivação, mas é uma responsabilidade muito grande. Pode salvar uma vida. Muitos que estão ali são amigos meus. Quando fui solto, eles me imploraram para que não os esquecesse", conclui Darwish.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.