
Em primeiro de maio de 2007, a polícia prendeu Kim Myung-soo em uma cela tão pequena que, se ele abrisse os braços, iria tocar as duas paredes. Em uma dessas paredes, uma televisão mostrava trens da Coreia do Sul e do Norte se preparando para cruzar a fronteira pela primeira vez desde o fim da Guerra da Coreia, em 1953. A reportagem também contava que a Coreia do Sul estava doando 400 mil toneladas de arroz para a Coreia do Norte.
Kim ficou irritado com tudo o que aconteceu e confuso com as reportagens sobre a reconciliação entre norte e sul. Afinal de contas, a justificativa oficial para sua prisão seria o fato de Kim ter "ajudado o inimigo", colocando no ar um site onde vendia livros considerados favoráveis a Coreia do Norte. Entre eles, uma biografia de Karl Marx e o livro Red Star Over China ("Estrela vermelha sobre a China", em tradução literal), no qual o jornalista americano Edgar Snow conta a história do nascimento do comunismo chinês.
Kim foi liberado após pagar fiança, mas ainda luta na justiça contra as acusações. Ele foi a praticamente todas as bibliotecas públicas de Seul e das cidades mais próximas para comprovar que todos os livros confiscados como prova do crime estariam à disposição em bibliotecas financiadas pelo governo.
"É tragicômico", afirmou Kim, de 56 anos, cuja absolvição em primeira instância foi contestada em um tribunal de apelação pelos promotores do caso. "É deprimente viver sob um governo como este."
A Coreia do Sul tem se mostrado favorável a uma reconciliação com a Coreia do Norte nos últimos anos. Mas isso não impede que o governo tome medidas para salvaguardar a sociedade de uma infiltração da ideologia comunista. Em nenhuma outra parte esses desejos antagônicos se contrapõem com mais força do que na Lei de Segurança Nacional, promulgada em 1948 para combater o comunismo e utilizada para indiciar Kim e muitos outros.
O conflito foi evidenciado nas últimas semanas, após a morte do líder norte-coreano Kim Jong-il. O governo da Coreia do Sul permitiu que a viúva do antigo presidente Kim Dae-jung, que havia abraçado Kim Jong-il durante a reunião que marcou o início das negociações para a reunificação, fosse até Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, para prestar suas condolências. Mas impediu que muitos outros sul-coreanos visitassem a Coreia do Norte com o mesmo fim, chegando até a prender um ex-militante do movimento estudantil que havia viajado para a capital norte-coreana.
Em Seul, ativistas conservadores impediram que um grupo civil montasse uma tenda para receber cidadãos que quisessem chorar a morte de Kim Jong-il como forma de promover a reconciliação com o norte. As autoridades da Universidade Nacional de Seul destruíram um altar improvisado em homenagem ao ditador, construído no campus por um estudante. Desde que a morte de Kim foi anunciada no dia 19 de dezembro, a Coreia do Sul intensificou o policiamento na internet, onde alguns blogueiros manifestaram suas condolências apenas para testar a tolerância do governo à liberdade de expressão.
Lee Kwang-cheol, advogado de defesa de diversas pessoas acusadas de acordo com a Lei de Segurança Nacional, afirmou que sua aplicação variou muito, dependendo da posição do governo em relação à Coreia do Norte.
"O que antes seria considerado como troca ou cooperação com a Coreia do Norte, representa hoje um ato de colaboração com o inimigo", afirmou Lee. Ele citou casos de pessoas que foram condenadas com base em conversas que tiveram com funcionários do governo norte-coreano durante visitas autorizadas por governos mais liberais.
Por anos, grupos de direito internacional, incluindo a comissão de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), têm pedido para que a Coreia do Sul revogue a lei. No entanto, a geração que vivenciou a Guerra da Coreia (1950-1953) ainda permanece cautelosa em relação ao comunismo e tem seus medos renovados a cada nova provocação militar da Coreia do Norte. Aproveitando-se dessa situação, alguns políticos sul-coreanos se utilizam do medo da sociedade em benefício próprio.
Controle na internet é preocupante
A Comissão de Normas de Comunicação da Coreia, a agência reguladora do governo sul-coreano, quase sempre aprova os pedidos feitos pela polícia ou pela agência nacional de espionagem para apagar sites que violam a Lei de Segurança Nacional.
Em maio, Frank La Rue, relator especial da ONU para divulgação e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão, afirmou que o controle sul-coreano sobre conteúdos on-line é "um assunto bastante preocupante".
No passado, o governo militar da Coreia do Sul utilizou a Lei de Segurança Nacional não apenas para processar espiões, mas também para perseguir dissidentes políticos. Entre 1961 e 2002, pelo menos 13.178 pessoas foram indiciadas, das quais 182 foram executadas em conformidade com a lei, de acordo com grupos de direitos humanos.
Os presidentes Kim Dae-jung e Roh Moo-hyun, apoiadores da reconciliação com o norte entre 1998 e 2007, aplicaram a lei com menos rigor. Mas o conservador Lee Myung-bak rejeitou essa abordagem quando tomou posse como presidente no início de 2008.
As relações entre as duas Coreias esfriaram ainda mais em 2010, quando a Coreia do Sul acusou sua vizinha de afundar um de seus navios de guerra e a Coreia do Norte bombardeou uma ilha sul-coreana.
Seul interrompeu o envio de ajuda humanitária e o trânsito de trens entre os dois países. Além disso, também aumentou o policiamento na internet, citando o que chamou de uma crescente infiltração de propaganda ideológica da Coreia do Norte. O governo nega que tenha transformado a lei em arma contra dissidentes políticos.
A lei considera crime o ato de enaltecer, cooperar ou se solidarizar com a Coreia do Norte, caso isso resulte em ameaça à segurança nacional. Mas os termos da lei são tão vagos que, décadas atrás, até pessoas que tivessem elogiado a Coreia do Norte depois de beber eram detidas para interrogatório.
Dependendo do promotor ou do juiz, O Manifesto Comunista poderia ser considerado apenas um panfleto político de interesse histórico ou um "material subversivo", cuja posse poderia resultar em até sete anos de prisão.