A última madrugada de sábado (14) foi subitamente interrompida na Síria. Uma coalizão formada por caças de Estados Unidos, França e Reino Unido bombardeou posições de Bashar al-Assad, presidente (leia-se ditador) sírio. O ataque foi uma retaliação pelo uso de gás cloro e um agente nervoso, possivelmente sarin, que vitimou ao menos 40 pessoas na região de Duma, próxima da capital Damasco. A guerra na Síria é travada desde 2011 e teve, nesse período, diferentes graus de envolvimento de uma miríade de atores internacionais. Por isso, é necessário recapitular quais os interesses de cada lado, o que permite projetar as consequências possíveis dos últimos acontecimentos.
Leia também: Síria: quem está envolvido no conflito? E o que eles querem?
Após os ataques, tivemos uma coletiva de imprensa realizada pelo Secretário de Defesa dos EUA, James Mattis, e pelo Chefe do Estado-maior, Joseph Dunford. Uma declaração foi dada, afirmando que o foco da operação foi contra, apenas, a “capacidade de guerra química” do regime de Assad, incluindo bases aéreas de onde partiram ataques. It’s a one time shot, “é um tiro único”, disseram.
As declarações e as respostas dadas às subsequentes perguntas dos jornalistas indicam que tratou-se de uma operação pontual, represália ao episódio de Duma, mas isso contraria a semana de tensão, com escalada da retórica por parte do Ocidente e dos russos, principais aliados sírios. A hostilidade não ficou restrita às palavras: houve aumento da presença militar na região, de ambos os lados, que pode tornar-se permanente.
O ataque da madrugada
É essa retórica que talvez tenha motivado a operação, uma série de lançamentos de mísseis com a intenção de salvar as aparências de todos os envolvidos. A ação não teve grandes impactos sobre a Síria e seu regime, que agora pode se vangloriar de ter resistido a mais um ataque dos EUA.
Já o país americano e seu presidente não ficam com a pecha de terem voltado atrás em suas declarações, após a cúpula militar desaconselhar uma intervenção de larga escala. Situação similar a dos franceses, que delimitaram o uso de armas químicas como “linha vermelha”, e dos britânicos, envolvidos com a troca de acusações com a Rússia sobre o envenenamento do agente duplo Sergei Skripal; com o ataque, ambos governos saem com a imagem de terem agido, já que a inação poderia ser vista como fraqueza.
Finalmente, os russos não tiveram perdas materiais e puderam manter as declarações contra a operação do Ocidente. Muito provavelmente houve algum grau de coordenação entre os aliados ocidentais e a Rússia, para o uso do espaço aéreo e para evitar perdas russas que seriam desastrosas para essa crise.
Relatos apontam para uma evacuação por parte das forças sírias antes do ataque. O regime pode até afirmar que abateu alguns mísseis inimigos como forma de propaganda. Resumindo, o que aconteceu foi possivelmente um teatro, para diversificado consumo interno. É importante frisar que é muito complicado comprometer totalmente a capacidade de armas químicas do regime sírio baseado no episódio de Duma, realizado com gás de cloro, um produto comum, de uso até em limpeza.
Apesar do possível teatro, três atores foram afetados pela operação. Um dos alvos atingidos foi um centro de comando, perto de Homs, um ponto ligeiramente fora da curva no perfil dos alvos escolhidos. Especula-se que tal centro de comando seja do Hezbollah, grupo xiita libanês que rivaliza com o próprio Estado do Líbano em influência. A presença do Hezbollah é tanto uma influência indireta do Irã quanto vista como uma ameaça por Israel.
O saldo da operação, com a confirmação dessa especulação, seria positivo para israelenses e negativo para iranianos, os único realmente atingidos. Finalmente, a Turquia manifestou solidariedade aos seus aliados da OTAN e condenou o uso de armas químicas, embora o governo de Ancara, hoje, tenha laços políticos e econômicos com a Rússia, com quem dialoga para o fim do conflito.
Armas químicas
O uso de armas químicas, infelizmente, não é novidade no conflito na Síria. Dezenas de episódios relatados, diversos sem responsabilidade clara, com a óbvia e esperada troca de acusações. Armas químicas usadas pelo regime autoritário contra rebeldes; uso de armas químicas que eram do regime e foram tomadas e usadas pelos grupos rebeldes; fornecimento de armas químicas aos grupos rebeldes por potências estrangeiras; uso de armas químicas por um lado do conflito para forjar uma denúncia contra o outro, conseguindo chamar a atenção internacional, no que se costuma chamar de false flag, bandeira falsa em tradução literal.
No caso do episódio em Duma, restam algumas incógnitas, daí o uso anterior do termo “suposto”. A região estava sob controle do Jaysh al-Islam, Exército do Islã, grupo salafista e jihadista financiado por sauditas. Não se trata de um grupo rebelde convencional, mas de extremistas. Tal grupo poderia, com os devidos recursos, realizar um ataque químico contra a população do território para simular um ataque do regime e forçar uma escalada do Ocidente.
Simultaneamente ao episódio do uso de armas químicas, foi relatado um ataque aéreo contra Duma, por helicópteros. Os céus da Síria são controlados pelo regime, com apoio russo. Se o gás veio de bombas jogadas do céu, não existem outros suspeitos.
Ainda assim, hoje, pragmaticamente, o regime não teria muito a ganhar com o uso de armas químicas, embora estivesse em um avanço para retomada de territórios. Além da falta de escrúpulos dos envolvidos, colabora com a incerteza o fato de materiais como cloro serem de fácil acesso.
Dentre as diversas denúncias feitas sobre esse e outros episódios, nenhum lado, jamais, apresentou uma prova conclusiva e irrefutável do envolvimento de cada ator — do que se pode conjecturar que todos os envolvidos possam ser responsabilizados por um ataque. Após os bombardeios realizados pelos aliados ocidentais, uma missão da Organização para Proibição das Armas Químicas (OPAQ) iniciou investigação no local, hoje controlado por forças russas e do regime, para tentar determinar o que aconteceu.
Interesses em Ancara, Riad e Paris
No início do mês, Vladimir Putin e Recep Erdogan, presidentes de Rússia e Turquia, se encontraram em Ancara, onde assinaram contratos bilionários de energia nuclear e fornecimento de armamento. Posteriormente, a dupla recebeu a companhia de Hassan Rouhani, presidente do Irã. A pauta, obviamente, era a Síria. Curiosamente, não ocorreu alguma hipocrisia de tentar transmitir a ideia de que tudo é uma maravilha ou de que os três países concordam em todas as pautas. O comunicado final falava em diminuir o número de confrontos e de mortes, evitar a escalada e fortalecer as conversas de paz que acontecem em Astana, no Cazaquistão.
Nesse diálogo estão reunidas não apenas as três potências que se encontraram em Ancara, mas também as forças que elas representam. A Rússia, além de seus interesses, representa o governo sírio e os curdos de Rojava, que advogam por uma federalização da Síria, proposta com apoio russo; o Irã representa também o Hezbollah e as comunidades xiitas, principais alvos do barbarismo do autointitulado Estado Islâmico; finalmente, a Turquia não advoga apenas as suas prioridades, mas também representa parte do Exército Livre da Síria e das brigadas de turcomanos, população com parentesco com os turcos.
Quais seriam esses interesses? Irã, Rússia e China são pró-Assad, por questões geopolíticas e econômicas.
A Rússia possui bases aeronavais na Síria desde tempos soviéticos, atualmente as únicas bases russas no Mediterrâneo, permitindo maior projeção de capacidade naval além dos estreitos de Bósforo e Dardanelos. O país de Putin também é parceiro da Síria em projetos de oleodutos e gasodutos. Notável também que o conflito na Síria serviu de ponto focal de atividades jihadistas, o que inclui grupos chechenos e de outras repúblicas caucasianas; o combate a esses grupos é vital para a Rússia, que, assim, evita mais conflitos em seu território.
O Irã, apoiando o regime sírio, consegue fortalecer ainda mais seu aliado regional, o Hezbollah, e ter mais ponto de contato direto contra seu inimigo declarado, o Estado de Israel. Já a China, assim como seus aliados, visa a reconstrução da Síria, em todos os sentidos: investimentos em infraestrutura, bens de consumo e as próprias forças armadas locais.
O interesse turco na Síria divide-se em três. A Turquia combate os grupos curdos, que, por sua vez, são apoiados pelo Ocidente e pela Rússia, e tolerados por conveniência por Assad. Os curdos são, talvez, o maior grupo nacional do mundo que não possui um Estado próprio. Cerca de três milhões de curdos residem na Síria. Outros quinze milhões no norte do Iraque e noroeste do Irã. A maior comunidade, entretanto, está na Turquia, com entre quinze e vinte milhões de curdos, onde são chamados de “turcos das montanhas”, negando a própria identidade do grupo; os movimentos políticos curdos são, em sua maioria, classificados como terroristas. A Turquia teme que um fortalecimento curdo em sua fronteira leve a um separatismo curdo interno, ou até mesmo a um conflito em seu território.
Os outros interesses turcos são a projeção do país como uma potência regional e a contenção da influência de rivais médio-orientais. Isso leva à posições mutantes ou ambivalentes na política turca nos últimos anos. O país é tanto um membro da OTAN quanto um novo e bilionário cliente de armamento russo; a condenação turca ao uso de armas químicas enquanto responsabilizava o regime de Assad foi, de certo modo, um alento aos seus aliados ocidentais, em meio tais contradições.
A Turquia já foi tanto o mais vocal proponente da derrubada de Assad quanto via no país vizinho um potencial parceiro de negócios. Essa aparente contradição foi repetidas vezes explorada pelos russos, que lembravam constantemente que a oposição síria foi, em boa parcela, treinada e financiada pela Turquia. Mais que isso, o governo russo insinuou, não apenas uma vez, que a Turquia e o auto-intitulado Estado Islâmico teriam relações mais profundas e escondidas.
A contenção de rivais e projeção dos próprios interesses também dá o tom da postura saudita e de seus aliados do Golfo Pérsico; o recente bloqueio ao ex-aliado Qatar pelos sauditas é exemplar em como Riad pensa que devem ser suas relações com tais aliados. A guerra na Síria é o caso mais visível da “Guerra Fria” do Oriente Médio entre sauditas e iranianos, disputa que remonta ao final da década de 1970. Embora o mais visível, seria difícil hierarquizar quais são mais trágicos quando se consideram as atrocidades cometidas na guerra civil iemenita, como os bombardeios realizados pelos países do golfo. O conflito no Iêmen também é entre dois grupos apoiados cada um por uma potência regional.
Não é “teoria da conspiração” que os sauditas e demais países do golfo, incluindo o Qatar, enviaram bilhões de dólares em armamentos e suprimentos para grupos de oposição ao regime Assad. Isso inclui movimentos classificados como terroristas pelos EUA, como o Jaish al-Fatah, Exército de Conquista, que reunia diversos grupos como a filiação local da al-Qaeda. Os sauditas e o Estado Islâmico teriam relações que iam além da inspiração ideológica pela vertente Wahhabita do Islã, versão mais extremista da religião e que é professada e difundida pela Arábia Saudita; segundo o príncipe herdeiro, uma demanda ocidental na Guerra Fria. A derrubada de Assad seria uma das prioridades do reino saudita para expandir sua influência e projetos econômicos; de quebra, isola o rival Irã de sua influência também no Líbano.
Os sauditas possivelmente são os maiores interessados na queda de Assad e isso talvez explique a mudança recente na postura francesa. Até o início do mês, a França e seu presidente, Emmanuel Macron, advogavam por um papel ocidental limitado ao combate ao terrorismo. Após uma visita de Mohammed bin Salman (conhecido como MBS), príncipe herdeiro saudita e quem de fato lidera o país, isso mudou.
A visita foi uma das várias da turnê de relações públicas e renovação de imagem promovida pelo príncipe, que busca mudar o retrato do reino absolutista pelo mundo, passar a ideia de modernização. Em meio ao jantar privado no Louvre e o silêncio sobre violações de direitos humanos, houve a assinatura de contratos bilionários, troca de afagos e a concordância francesa em “reduzir o expansionismo iraniano”.
Dificilmente é coincidência que, alegando reprimenda pelo uso de armas químicas por parte do regime, Macron comprometeu a França na Síria após os três dias de MBS em Paris; o príncipe ainda passou em Madri, onde comprou novas corvetas espanholas por alguns bilhões de euros.
Como consequência do envolvimento francês, mais um exemplo da ambivalência da Turquia: a mídia local divulgou posições francesas em apoio aos curdos “terroristas”, certamente com a fonte de informação sendo os serviços de inteligência turcos que “vazaram” tais dados. A Turquia pode ser aliada da França na OTAN e podem até chegar num ponto comum sobre Assad, mas não possuem os mesmos interesses quando se tratam dos curdos.
Posições reativas
Israel possui um único e claríssimo item na sua agenda sobre a Síria: evitar mais uma ameaça iraniana em sua fronteira, além do Hezbollah. Nesse sentido, o governo de Netanyahu busca manter suas opções abertas, dialogando com diversos atores: Putin, Trump e, de forma discreta, com a Arábia Saudita, embora os dois países não tenham relações oficiais; Israel é reconhecido apenas por dois países árabes, Egito e Jordânia.
As relações entre Israel e Rússia têm se tornado mais intensas nos últimos anos, algo associado também ao número enorme de israelenses originários da ex-União Soviética. A Turquia é a exceção nas relações entre israelenses e demais atores na Síria. Israel e o governo turco já trocaram diversas farpas devido ao apoio de Ancara, direto e indireto, ao Hamas palestino.
No que concerne a Síria, o que conecta Israel, sauditas e a Europa ocidental é Washington, aliado de todos esses atores em diferentes esferas. Inicialmente, os EUA pretendia alimentar os protestos da chamada Primavera Árabe e eventualmente derrubar o regime Assad. A Síria é o único país territorialmente e belicamente notável na região que não possui elos militares com os EUA, além de manter uma relação próxima com o regime de Teerã.
Para os EUA, nesse tabuleiro do Oriente Médio, seria vital retirar a Síria dessa posição. Isso sacramentaria um isolamento político e geográfico do Irã, principal antagonista dos EUA. Esse seria o principal objetivo de Washington: retirar do cenário o último aliado iraniano na região.
O surgimento do Estado Islâmico no vácuo de poder criado no Iraque, que amalgamou a comunidade internacional contra sua barbárie, e a força da intervenção russa pró-Assad acabou por minar esse projeto. Mudar o regime sírio não valia o risco de conflito com uma potência nuclear como a Rússia. Ao mesmo tempo, o governo americano não se distancia totalmente do conflito, mantendo apoio aos seus aliados e o combate contra o Estado Islâmico. Atualmente, milhares de militares dos EUA estão no território controlado pelos curdos. Isso faz com que, hoje, a maior potência militar do mundo tenha uma posição meramente reativa, ou seja, reagem aos acontecimentos que não desejam, por exemplo, contra Irã e Assad. Sem grandes propostas.
Propostas e possibilidades
A posição reativa não é exclusividade dos EUA, ao contrário. Atualmente, boa parte dos atores envolvidos na Síria são reativos, pouco propositivos. Ao pensar no longo prazo, em consequências e desdobramentos de ataques como o que foi realizado, qual o plano, qual o objetivo?
Habitualmente, a resposta é uma mera retórica de uma Síria pacífica, democrática, etc. E como chegar nesse ponto? O que está colocado em negociação, quais objetivos estratégicos, além dos percalços táticos e da mera troca de peças?
Hoje esse é o grande empecilho para uma paz duradoura e de longo prazo na Síria: vários atores envolvidos estão em situação em que não perderam, mas também sabem que não ganharão.
O desgaste de anos de conflito e a miríade de relações e de grupos intensifica esse problema. Sequer é simples condensar todo o conflito e agendas envolvidas. Como conciliar os interesses e a falta de objetivos pragmáticos?
Para o regime Assad, seu objetivo era um só: sobreviver, garantir a existência do governo. Isso foi atingido. Caso Assad saia do poder, muito provavelmente será pela força da negociação, algo que satisfaça seus aliados, não mais pelo conflito. Por isso que o que existe hoje é uma guerra na Síria, não da Síria. Localização, e não pertencimento, um choque de interesses externos dentro e em relação ao território sírio.
A guinada francesa, para uma posição próxima aos sauditas, é fenômeno importante. É possível dizer que a França, atualmente, é a maior apoiadora de uma ação ocidental mais incisiva. Macron diz não querer um Estado falido e condena o que houve na Líbia, situação causada com parte de responsabilidade francesa. Desejaria uma transição, solução negociada, não um conflito que oblitere o que resta da Síria e crie mais um vácuo para tragédias humanitárias e barbárie.
Uma intervenção forte para mudança de regime é o desejo de sauditas e de falcões extremos, como John Bolton, novo Conselheiro de Segurança Nacional de Trump. Esse cenário, entretanto, é irreal, já que facilmente poderia levar à uma perda de controle da situação, com forças da OTAN e da Rússia muito próximas umas das outras.
Resta a proposta russa, de federalização da Síria, com comunidades autônomas dentro do país, modelo similar ao da Bósnia tripartite; mesmo assim, não é unânime, com forte oposição turca, que teme a autonomia curda. Outra discórdia é do fórum de conversas sobre o futuro sírio. O Ocidente defende que as negociações ocorram em Genebra, com maior voz para a oposição; russos, turcos e iranianos negociam em Astana, falando por seus aliados. Em termos de realpolitik, a política realista, Rússia e Turquia são os principais tomadores de decisão desse processo; essa posição, entretanto, não é aceita sem relutância.
A luta contra o terrorismo é supostamente unânime, mas também flutua com as marés da conveniência. Grupos como o Tahrir al-Sham, Organização para a Libertação do Levante, sucessor da al-Qaeda na Síria, tem ganhado território nos últimos meses, enquanto os Estados nacionais demonstram falta de sintonia. Tal tipo de avanço deve servir de alerta para a situação atual, que é delicada em suas contradições.
Dificilmente a força das armas mudará o destino sírio, entretanto, os atores envolvidos não abrem mão da força para defesa de seus interesses. Ou essa contradição é notada e reverte-se em negociações amplas e intensas, ou ela se agrava até um ponto em que não haverá mais retorno.
*Filipe Figueiredo é graduado em História pela Universidade de São Paulo e comenta política internacional no blog Xadrez Verbal.