O presidente americano Joe Biden realizou sua primeira ação militar nesta semana, quando ordenou ataques aéreos contra instalações no leste da Síria usadas por milícias pró-Irã. A ação foi uma resposta a recentes ataques desses grupos contra bases no Iraque que abrigam militares americanos, que deixaram um civil morto e um soldado ferido, disse o Pentágono. Com isso, os EUA quiseram enviar uma mensagem clara: quem atacar tropas americanas na região sofrerá o risco de retaliação.
A ofensiva reacendeu o debate entre o Congresso americano e a Casa Branca sobre os limites dos poderes de guerra do chefe do Executivo do país e alguns democratas questionaram a justificativa legal da ação.
Os países envolvidos na disputa se opuseram à decisão da Casa Branca. Um porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Irã condenou "os ataques ilegais e agressivos" dos Estados Unidos, considerando-os uma "clara violação aos direitos humanos e à lei internacional", de acordo com a agência estatal Irna. Na avaliação de Teerã, a ação americana é "uma clara violação à soberania e à integridade territorial da Síria".
A Síria descreveu o bombardeio a posições iranianas em seu país como um ato covarde e pediu que Biden não seguisse a "lei da selva". "A Síria condena nos termos mais veementes o ataque covarde dos EUA a áreas em Deir al-Zor perto da fronteira entre Síria e Iraque", disse o Ministério de Relações Exteriores sírio em comunicado. "[O governo Biden] deve se ater à legitimidade internacional, e não à lei da selva, como fazia a administração anterior".
Um porta-voz do ministério sírio disse que os ataques foram uma "agressão ilegal" e uma violação de direitos humanos e da lei internacional.
Democratas questionam justificativa da Casa Branca
Alguns congressistas americanos questionaram a legalidade da decisão do governo Biden pela ação militar, dizendo que o Congresso não aprovou uma autorização para o uso de força militar especificamente na Síria.
"Isso torna o presidente Biden o sétimo presidente americano consecutivo a ordenar ataques no Oriente Médio", disse o deputado democrata Ro Khanna. "Não há absolutamente qualquer justificativa para um presidente autorizar um ataque militar que não seja em autodefesa contra uma ameaça iminente sem a autorização do Congresso".
O senador democrata Tim Kaine disse que "uma ação militar ofensiva sem a aprovação do Congresso não é constitucional quando não há circunstâncias extraordinárias".
Chris Murphy, senador democrata, considerou "inaceitável" os ataques de milícias iranianas contra posições americanas no Iraque e disse que confia na capacidade de decisões sobre segurança nacional de Biden. Mas ele defendeu que ações retaliatórias precisam de aprovação prévia do Congresso, segundo noticiou a CNN.
"O Congresso deve ter essa administração nos mesmos padrões que tinha com administrações anteriores e exigir justificativas legais claras para ação militar, especialmente em teatros como a Síria, onde o Congresso não autorizou explicitamente qualquer ação militar americana", disse Murphy.
O porta-voz do Pentágono, John F. Kirby, disse em entrevista coletiva na sexta-feira que a resposta militar foi conduzida em conjunto com medidas diplomáticas, incluindo consulta a parceiros da coalizão e notificação a lideranças do Congresso antes dos ataques.
Críticos acusam equipe de Biden de hipocrisia
A porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, tem sofrido críticas por um tuíte antigo em que ela questionava a legalidade de ataques aéreos dos EUA na Síria durante do governo de Donald Trump.
O governo Trump autorizou, em 2017, o lançamento de mísseis contra o território sírio em resposta ao uso de armas químicas por forças do ditador sírio Bashar al-Assad. Em 6 de abril de 2017, Psaki criticou a decisão em seu perfil no Twitter: "Qual é a autoridade legal para os ataques? Assad é um ditador brutal. Mas a Síria é um país soberano", disse ela na publicação.
Críticos dizem que, pela lógica de Psaki, os ataques autorizados por Biden também deveriam ser considerados ilegais.
A vice-presidente Kamala Harris também fez questionamentos parecidos acerca de outro ataque realizado no período Trump, em 2018, quando os EUA e aliados ocidentais atingiram instalações de armas químicas na Síria. "Eu estou profundamente preocupada com o fundamento legal dos ataques da noite passada", disse Harris em 14 de abril de 2018, quando era senadora pela Califórnia. "O presidente precisa traçar uma estratégia na Síria em consulta com o Congresso - e ele precisa fazer isso agora".
Um porta-voz do Conselho Nacional de Segurança dos EUA justificou o ataque desta semana citando a Constituição dos EUA e a lei internacional. "O presidente agiu de acordo com os poderes de autodefesa inerentes consagrados em nossa Constituição e na Carta da ONU. Tivemos um processo rigoroso para incluir uma revisão legal dos ataques realizados", afirmou o porta-voz em comunicado para o Business Insider.
"Em termos da legislação doméstica, o presidente tomou esta ação de acordo com sua autoridade do Artigo II para defender pessoal dos EUA", disse ainda o comunicado. O Artigo II da Constituição dos Estados Unidos aponta o presidente da nação como comandante-chefe das Forças Armadas.
"Em termos da legislação internacional, os Estados Unidos agiram de acordo com seu direito de autodefesa, conforme refletido no Artigo 51 da Carta da ONU. Os ataques foram necessários para enfrentar a ameaça e proporcionais aos ataques anteriores", continuou a nota.
Esse artigo da Carta das Nações Unidas afirma que nada na legislação da ONU "deve prejudicar o direito inerente de autodefesa individual ou coletiva se um ataque armado ocorrer contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado medidas necessárias para manter a paz e a segurança internacionais".
Mary Ellen O'Connel, professora de Direito da Universidade de Notre Dame e autora do livro "Autodefesa contra atores não estatais", disse ao Vox que concorda que o presidente deve pedir autorização do Congresso quando há tempo para isso, e que nesse caso havia tempo, já que as agressões iranianas não estavam ocorrendo naquele momento.
Para a pesquisadora, a Casa Branca não interpretou corretamente o artigo da Carta das Nações Unidas. Ela disse que o ataque das forças iranianas não ocorreu em território americano e que os EUA tinham tempo suficiente para trabalhar com os parceiros do Conselho de Segurança para punir o Irã usando diplomacia, e não a força.
O que dizem as leis internacionais
Nas últimas décadas, foram estabelecidos vários acordos, convenções e normas internacionais que têm o objetivo de evitar genocídios e guerras. "A lei internacional é totalmente interpretativa, porque os países são soberanos. Não existe uma lei internacional que pode ditar o que acontece dentro de um país", explica André Lajst, cientista político especialista em Oriente Médio e segurança nacional. "Mas existem convenções e uma série de mecanismos para que o uso da força seja um pouco mais legitimado e que acabam pautando o que os países podem ou não fazer".
A lei internacional é mais clara em relação a atores de Estado. "Mas no caso de atores não estatais, clandestinos, paramilitares e milícias, fica um pouco mais complicado", diz Lajst, que também é diretor da ONG StandWithUs Brasil.
Para o cientista político, no caso específico do ataque americano contra as instalações na Síria, os EUA não fizeram algo diferente do que o Irã faz com frequência no Oriente Médio. "O Irã atua militarmente de forma clandestina em vários países no Oriente Médio, o que também é uma violação da soberania de países como Iraque, Líbano e Iêmen", diz. Isso colocaria em risco uma série de posições americanas estratégicas, bases legais que os EUA têm no Iraque, na Arábia Saudita e no Líbano, por exemplo.
"Quando o Irã ou milícias iranianas atacam essas bases, como aconteceu com o lançamento de foguetes, existe um casus belli, e a resposta está dentro da norma internacional", avalia Lajst, usando a expressão em latim que descreve um ato que pode ser usado para justificar guerra ou uma ofensiva. "Seria talvez questionável se eles tivessem usado uma força desproporcional. Pelo o que entendi, não foi usada uma força desproporcional nesse caso", ressalta.
Em comunicado, o Pentágono descreveu o ataque como uma "resposta militar proporcional conduzida em conjunto com medidas diplomáticas".
Negociações nucleares
O ataque aéreo ocorreu no momento em que Estados Unidos e Irã se preparam para negociar o retorno ao acordo nuclear de 2015 com outras potências globais, abandonado por Trump em 2018.
Para Lajst, quando o Irã notou a disposição americana em retornar ao acordo, passou a fazer uma série de exigências, colocando os EUA em uma posição mais fraca. Portanto, o ataque aéreo contra posições iranianas demonstra que os EUA não terão paciência com Teerã, como os iranianos pensavam que Biden poderia ter.
"Isso aproxima a administração Biden a uma narrativa mais próxima da que existia no governo Trump: o Irã é um país agressivo que apoia o terrorismo e o uso da força não está fora da mesa", afirma Lajst. "Acredito que o Irã agora irá medir a consequência de suas ações e ficará mais humilde na hora de voltar às negociações".
Como foi o ataque
O ataque das forças armadas dos EUA no leste da Síria teve início por volta de uma da manhã de sexta-feira (26) (horário local, 20 horas de quinta-feira em Brasília). Dois caças bombardeiros F-15E Strike Eagles lançaram sete bombas de precisão que destruíram totalmente nove instalações e parcialmente outras duas, afirmou o porta-voz do Pentágono, John F. Kirby, em entrevista coletiva na sexta-feira.
As estruturas estavam na cidade de Abu-Kamal, perto de um posto de controle de entrada comandado por terroristas, segundo o porta-voz, próximo à fronteira entre a Síria e o Iraque. O local seria usado para facilitar o contrabando de armas de milícias alinhadas ao Irã, como Kait'ib Hezbollah e Kait'ib Sayyid al-Shuhada.
"Nós temos detalhes preliminares sobre casualidades no local, mas não poderei discutir detalhes adicionais neste momento porque a nossa avaliação de danos de batalha está em andamento", disse Kirby.
Fontes ligadas às milícias disseram à imprensa local que uma pessoa morreu, enquanto que o Observatório Sírio para Direitos Humanos, uma ONG britânica que atua na Síria, afirma que 22 militantes foram mortos – a maioria membros do Hezbollah no Iraque (Kata’ib Hezbollah). "O número de mortos deve aumentar ainda mais, já que o ataque deixou vários milicianos feridos, alguns deles gravemente. Existem relatos não confirmados de mais vítimas", disse o observatório na manhã da sexta-feira (26).
O ataque teve dois propósitos, segundo o Pentágono: causar um impacto nos grupos e em sua capacidade de conduzir ataques futuros e mandar um sinal claro de que os Estados Unidos irão proteger suas pessoas e interesses e os de seus parceiros na região.
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