O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e o ditador norte-coreano, Kim Jong-un, destruíram mais de um ano de relativa tranquilidade na quinta-feira (9) quando os EUA apreenderam um navio norte-coreano e o regime da Coreia do Norte lançou dois mísseis balísticos de curto alcance.
As tensões renovadas seguiram uma série de batalhas internas que Trump e Kim tiveram com seus próprios subordinados no processo de alcançar um acordo histórico de desarmamento.
"Ninguém está feliz com isso", disse Trump a repórteres em Washington em uma de suas observações mais pessimistas sobre o relacionamento até o momento. "Eles estão falando em negociar, mas não acho que estejam prontos para negociar."
Foi a primeira vez que os Estados Unidos apreenderam um navio cargueiro norte-coreano por violar sanções internacionais, informou o Departamento de Justiça, e o primeiro teste confirmado de mísseis por Pyongyang em mais de 500 dias.
Bom relacionamento
O retorno das provocações demonstrou os limites do relacionamento pessoal entre Kim e Trump, que o presidente alegou ser a chave para superar décadas de desconfiança.
No mês passado, Trump enviou a Kim uma carta de "feliz aniversário" para comemorar a data de nascimento de seu avô, Kim Il Sung, e manifestou interesse em futuros compromissos após o fracasso da reunião entre eles em fevereiro, em Hanói, no Vietnã.
"Ele envia fotos. Ele envia cartas para ele. Não sei como o presidente Trump pode ser mais comunicativo em seus esforços para ter um bom relacionamento com Kim Jong-un", disse o conselheiro de segurança nacional John Bolton ao telejornal PBS NewsHour.
Na construção de um relacionamento, Trump e Kim conversaram sobre basquete, cultura pop e até videogames, disseram autoridades dos EUA, ao mesmo tempo em que desbancavam conselheiros que os decepcionavam.
Em abril, Kim rebaixou seu representante nas negociações nucleares, Kim Yong Chol, repreendendo um proeminente linha-dura e ex-chefe de espionagem que exasperou os negociadores norte-americanos com suas exigências teimosas e comportamento distante, disseram dois funcionários do Departamento de Estado.
Trump também lutou com seus principais conselheiros para preservar uma atmosfera positiva para um acordo. Na terça-feira, Trump disse ao presidente da Coreia do Sul em um telefonema que ele apoia a ajuda à Coreia do Norte para aliviar a escassez de alimentos, apesar das preocupações de alguns oficiais americanos de que isso poderia aliviar a pressão interna sobre o regime. Em março, ele descartou futuras sanções contra a Coreia do Norte em uma reunião com Bolton e reagiu com raiva depois de saber que as sanções anteriores foram impostas sem sua aprovação, disseram autoridades norte-americanas.
"O que é realmente impressionante é como, em ambos os sistemas, as burocracias nem sempre estão se movendo na mesma direção que os líderes estão sinalizando", disse Scott Snyder, um especialista em Coreia do Conselho de Relações Exteriores dos EUA.
Teste de mísseis
A decisão de Kim de disparar mísseis após um longo hiato parece sinalizar impaciência com as táticas duras de negociação do governo Trump, disseram analistas.
"O problema é: como Trump e Kim superam esse impasse?", questionou Sue Mi Terry, uma especialista em Coreia do Norte no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais e ex-analista da CIA. "Não parece haver um caminho a seguir."
Parceiro durão e imprevisível
O atual ponto de discórdia nas negociações é substantivo: Kim exigiu alívio de sanções antes de abandonar o programa nuclear construído ao longo de décadas como uma apólice de seguro contra a intervenção militar estrangeira. Bolton e o secretário de Estado Mike Pompeo, no entanto, se opõem ao alívio das sanções até que a Coreia do Norte se desnuclearize completamente.
Trump ficou frustrado com críticas públicas às táticas de seu governo e reclamou reservadamente que Kim é um parceiro de negociações durão e imprevisível.
"Não é como se eu estivesse lidando com o presidente da França", disse Trump em uma recente reunião privada de apoiadores, segundo uma pessoa que estava presente durante a conversa, e que, como os outros, falou sob condição de anonimato para descrever as discussões internas.
O presidente contou ao grupo uma história detalhada em que ele disse que Kim matou seu tio Jang Song Thaek e exibiu a cabeça dele para os outros, disse a pessoa presente.
A alegação sobre Kim ter exibido a cabeça de Jang é uma curiosidade. Embora a mídia estatal norte-coreana tenha anunciado em 2013 que Jang havia sido executado, não há relatos públicos de uma exposição do cadáver, e acredita-se que ele tenha sido morto por um pelotão de fuzilamento.
Impasse
O jogo de culpa sobre o impasse nas negociações tem misturado as alianças de radicais e moderados em Washington.
Os principais estudiosos conservadores de think tanks da Heritage Foundation e do American Enterprise Institute criticaram o governo e pediram ainda mais sanções econômicas. Por outro lado, muitos defensores do engajamento e da não-proliferação ofereceram um apoio cauteloso para um processo gradual que negocia o alívio parcial das sanções pela desnuclearização parcial.
"Os instintos de Trump em engajar os norte-coreanos foram sólidos", disse Robert Carlin, estudioso da Coreia do Norte na Universidade de Stanford e ex-funcionário do Departamento de Estado. "O ressurgimento da estratégia de tudo-ou-nada de Bolton nos colocou de volta no buraco."
Durante a cúpula de Hanói, Trump manteve Bolton longe de um jantar com Kim e disse a outros funcionários da Casa Branca que seu assessor não ajudaria a negociar um acordo, porque ele via o regime muito negativamente, disseram as autoridades.
Quando perguntado sobre sua satisfação com seu conselheiro, o presidente disse na quinta-feira que "John é muito bom", mas que ele tem que contrabalançar seus pontos de vista.
"Ele tem opiniões fortes sobre as coisas, mas tudo bem. Na verdade, eu modero o John, o que é incrível, não é?" Trump disse em um briefing improvisado. "Eu tenho outras pessoas que são um pouco mais conciliadoras do que ele, e no fim eu tomo a decisão."
O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, Garrett Marquis, disse que Bolton está "seguindo a agenda de segurança nacional do presidente, e enfatizou repetidamente que o presidente abriu a porta para a Coreia do Norte entrar em um futuro econômico muito brilhante".
Perspectiva positiva
Apesar de suas frustrações particulares, o presidente instruiu seus assessores a manter uma perspectiva positiva. Depois que a Coreia do Norte lançou projéteis de curto alcance na semana passada, Trump manteve esse comportamento.
"Eu acredito que Kim Jong-un percebe plenamente o grande potencial econômico da Coreia do Norte, e não fará nada para interferir ou acabar com isso", Trump twittou. "Ele também sabe que estou com ele e não quer quebrar sua promessa para mim. O acordo vai acontecer!"
Ainda assim, o lançamento de mísseis de curto alcance é uma violação das resoluções do Conselho de Segurança da ONU, e levantam questões sobre como os Estados Unidos decidirão confrontar a Coreia do Norte a partir de agora.
Troca de negociadores
Um dos poucos pontos brilhantes nas negociações, sob a perspectiva dos negociadores norte-americanos, é a decisão de Kim de rebaixar seu principal negociador e tirar-lhe o cargo de chefe do Departamento da Frente Unida, uma das agências de inteligência da Coreia do Norte.
Um fator chave foi a irritação de Kim por ser pego de surpresa quando Trump decidiu deixar Hanói sem um acordo, disseram diplomatas familiarizados com as negociações. Antes da cúpula, Kim Yong Chol havia fornecido avaliações otimistas sobre o status das negociações, e o líder norte-coreano acreditava que Trump aceitaria um acordo interino que trocava o alívio parcial das sanções econômicas pela desnuclearização parcial.
Kim então nomeou Jang Kum Chol como o novo chefe do Departamento da Frente Unida. Enquanto isso, ele promoveu a vice-ministra de Relações Exteriores, Choe Son Hui, que lhe ofereceu avaliações mais cautelosas sobre o status das negociações, e concedeu a ela filiação à Comissão de Assuntos de Estado, disseram os diplomatas.
Choe e seu chefe acompanharam Kim em uma reunião com o presidente russo Vladimir Putin em Vladivostok em 25 de abril, e Kim Yong Chol, não. Embora a posição de ninguém esteja assegurada, a reorganização parece trocar um grupo de oficiais de inteligência linha-dura que irritaram os negociadores americanos em busca de diplomatas com mais experiência na elaboração de acordos técnicos.
"Choe Son Hui conhece bem os americanos e tem trabalhado nessas questões por décadas", disse Joel Wit, especialista em Coreia do Norte no Stimson Center, observando a participação de Choe em conversações entre seis países envolvendo os Estados Unidos, a Coreia do Norte e outras nações durante o governo de George W. Bush. "Ela vai sentir bem se um acordo é possível ou não."
Além de culpar seus próprios subordinados, Kim orientou seus assessores a atacar os principais conselheiros de Trump por imporem uma linha dura nas negociações, disseram diplomatas familiarizados com o assunto. Choe acusou Pompeo e Bolton de criar uma "atmosfera de hostilidade e desconfiança", apesar da química "misteriosamente maravilhosa" entre Trump e Kim.
O único conselheiro norte-americano que escapou da ira do norte é o representante especial Steve Biegun, ex-executivo da Ford que se juntou a Bolton e outros assessores da ala radical em seus esforços para encontrar uma solução diplomática. Biegun é visto por muitos diplomatas como a melhor esperança de um avanço nas negociações, mas comandar a atenção de Pyongyang tem sido uma batalha para ele.
Desde a reorganização, Biegun pediu uma reunião com Choe, mas não recebeu resposta, disseram diplomatas a par de sua correspondência.
Biegun disse ao jornal americano Washington Post que as "discussões de nível de trabalho" envolvendo diplomatas de escalões mais baixos em Hanói ajudaram os dois lados a "diminuir as diferenças em várias questões" e enfatizaram que essas conversações deveriam ter prioridade antes de outra cúpula presidencial.
"A cúpula do presidente Trump com o presidente Kim em Hanói foi uma reunião muito produtiva, embora não tenha sido o momento de assinar um acordo", disse ele. "Acreditamos que as conversações em nível de trabalho são a melhor maneira de progredir neste momento".
Os defensores da pressão de Trump para uma solução diplomática para a crise esperam que Biegun e Choe possam encontrar uma maneira de levar adiante as negociações.
"Esperamos poder desenvolver e construir essa confiança entre eles", disse a ministra das Relações Exteriores sueca, Margot Wallstrom, em entrevista na embaixada da Suécia em Washington. "Biegun nos impressionou ".
A Suécia foi anfitriã de Biegun e Choe em janeiro, mas na época os dois diplomatas "sondaram um ao outro" em vez de negociar detalhes específicos, disse Wallstrom.
A falta de resposta da Coreia do Norte a Biegun pode ser por causa de suas próprias deliberações sobre quem deveria ser o correspondente adequado. "Eles estão tentando descobrir se Choe ou outra pessoa deveria estar trabalhando com ele", disse Wit.
Também poderia demonstrar, no entanto, o desinteresse da Coreia do Norte em negociar com qualquer um, exceto Trump.
As intenções do líder da Coreia do Norte nunca são totalmente claras, mas Kim enfatizou a importância de agir rapidamente para concluir um acordo, dizendo em um discurso recente que ele esperaria apenas "até o final do ano" para que os Estados Unidos optassem por uma abordagem mais flexível sobre o alívio de sanções.
Kim e Trump ansiosos por um acordo
Analistas dizem que Kim acredita que o presidente pouco ortodoxo oferece uma oportunidade melhor para um acordo favorável do que qualquer sucessor potencial após a eleição de 2020. Isso significa que um acordo deve ser negociado rapidamente, disseram eles.
"Do ponto de vista de Kim, Trump é a única pessoa de quem ele pode tirar muito proveito", disse Terry, o ex-analista da CIA. "Qualquer outro líder teria um processo diplomático de baixo para cima. Mas com Trump, é de cima para baixo e ele está disposto a assinar um tratado de paz e colocar ações de aliança na mesa. É por isso que Kim quer ver um acordo e por isso que analistas da Coreia ficam nervosos".
Trump também parece ansioso por um acordo.
Dado o entusiasmo de Trump, seus assessores tiveram o cuidado de mantê-lo atualizado, mas alguns mais do que outros.
Em março, depois que os EUA impuseram novas sanções à Coreia do Norte e estavam considerando medidas futuras, o assessor da Casa Branca Robert Blair advertiu Bolton de que Trump não tinha sido notificado e poderia não querer as sanções, afirmaram autoridades norte-americanas. Bolton disse que sabia o que Trump queria e lidaria com o problema. Mas a confiança de Bolton, relatada pela primeira vez pela Bloomberg News, parecia estar equivocada.
No dia seguinte, Bolton contou a Trump sobre as sanções e a possibilidade de novas sanções no futuro. Trump respondeu com raiva, disseram dois funcionários com conhecimento sobre a reunião, e disse que não queria sanções futuras ou anteriores. "Eu não quero fazer isso", repetiu Trump.
Diante da perspectiva incomum de cancelar as sanções recém-anunciadas, Trump e seus assessores se envolveram em uma discussão tensa que incluiu uma intervenção do secretário do Tesouro, Steven Mnuchin, para defender as sanções anteriores. Por fim, Trump concordou em manter a rodada anterior, mas insistiu que ele não queria futuras sanções.
A Casa Branca pontuou a decisão em uma declaração destinada a manter as conversas ativas e assegurar a um jovem líder mundial acima de todos os outros que Trump o entende.
"O presidente Trump gosta do presidente Kim", disse a secretária de imprensa da Casa Branca, Sarah Sanders. "Ele não acha que essas sanções serão necessárias."