Bruxelas, Bélgica - A Bélgica completa amanhã um ano sem governo um recorde para a sua própria história, marcada por inúmeros conflitos políticos, e também para o mundo. Nunca uma nação passou tanto tempo sem um comando legitimado. Longe das esferas do poder, nas ruas da capital Bruxelas, no entanto, a sensação é de que a situação pouco influencia no dia a dia de quem vive no país. Pessimistas em relação a uma solução no curto prazo, eles entendem que tudo continua funcionando muito bem.
"Estamos melhor assim, porque não desagrada a ninguém" brincam os moradores da cidade, que, ironicamente, também é sede da União Europeia. A situação é irônica porque as crises políticas são provocadas justamente pela divisão entre as lideranças políticas dos dois povos que formam o país.
A Bélgica tem uma população de cerca de 11 milhões de pessoas: 6 milhões de Flandres, que falam neerlandês, e 4,5 milhões de moradores da região de Valônia, cuja língua é o francês boa parte deles fala ainda o alemão. Há três governos regionais um para cada comunidade linguística, e um para a região de Bruxelas e cabe ao governo federal representar igualmente as três partes.
Sem conseguir essa representatividade, o então primeiro-ministro Yves Leterme renunciou ao cargo em abril do ano passado. Em junho, foi convocada uma nova eleição, mas nenhuma formação conseguiu maioria suficiente para governar sozinha o país. Desde então, os partidos políticos ainda não foram capazes de alcançar um acordo para a formação de um executivo.
Por trás do conflito há a intenção de se fazer uma nova Constituição para o país, que dê maior autonomia às regiões. Mas esse é o ponto de maior divergência. Flandres, mais próspera, quer o máximo de autonomia possível, e Valônia quer garantir a unidade nacional e mais solidariedade financeira. Segundo economistas flamengos ouvidos pelos jornais belgas, Flandres envia anualmente mais de 10 bilhões de euros a Valônia. Para os francófonos, a quantia não passa de 5,6 bilhões de euros.
"Sabemos que há pessoas mais radicais. Mas essa é uma questão política. Não há problema nenhum entre as pessoas no dia a dia. Não sentimos isso nas ruas", diz o garçom Christopher Vreven, belga que mora em Bruxelas. Ele diz que as pessoas estão preocupadas com a questão política, mas que ela não interfere em nada na rotina. "Tudo está andando muito bem."
Essa também é a visão da relações públicas Elise Rochez. "Não há impacto nenhum na minha rotina. No começo da crise as pessoas falam muito no assunto. Agora, é algo engraçado, fazemos piadas sobre a situação porque temos a sensação de que não podemos fazer mais nada."
Ela diz, no entanto, que tem amigos que trabalham em órgãos do governo que têm seus trabalhos prejudicados porque as verbas estão paradas, à espera de aprovação. Esse é o principal problema, na visão do advogado português Rui Cunha, na Bélgica há oito anos. "No dia a dia, nem sequer nos lembramos da situação. Mas muita coisa importante deixa de ser discutida e aprovada." Chefe do escritório da Confederação Nacional da Indústria (CNI) do Brasil e da Apex em Bruxelas, Cunha diz acreditar que a incerteza política desmotiva investimentos estrangeiros no país. "Continua sendo interessante entrar na Europa pela Bélgica. Mas, sem dúvida, a atração de investimentos se retrai porque ninguém tem ideia de como vai ser o futuro."
Economia
Essa incerteza já se reflete no mercado financeiro. Em dezembro, a agência de classificação de risco Standard&Poors rebaixou para negativa a perspectiva financeira da Bélgica, e advertiu que pode reduzir a nota do país. "Prevemos que uma incerteza política prolongada poderia prejudicar a reputação da solvência da Bélgica. Por esse motivo revisamos nossa perspectiva para a Bélgica à negativa, contra estável até agora", dizia o comunicado da S&P. A nota da dívida soberana belga de longo prazo é hoje AA+ a segunda melhor possível.
O temor dos economistas é que, na ausência de um governo, a Bélgica não pode concretizar reformas para controlar a sua crescente dívida pública o que pode fazer com que o país precise de um resgate financeiro.
O ponto é particularmente sensível neste momento porque é essa a situação vivida em Portugal, assim como já aconteceu com Grécia e Irlanda.
A jornalista viajou a convite da Delegação da União Europeia no Brasil.