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O primeiro-ministro Justin Trudeau, em imagem de 2023
O primeiro-ministro Justin Trudeau, em imagem de 2023| Foto: EFE/EPA/JUSTIN LANE

A Lei C-63, também conhecida como “Lei de Danos Online”, vem movimentando cenário político canadense nos últimos meses.

A legislação, proposta pelo governo do primeiro-ministro Justin Trudeau, conhecido por suas políticas progressistas, e defendida por seu ministro da Justiça, Arif Virani, foi apresentada em fevereiro e está neste momento sendo debatida por congressistas durante o processo de primeira leitura na Câmara dos Comuns, o Parlamento do Canadá.

A “Lei de Danos Online” tem gerado nas redes sociais e no mundo político do país norte-americano debates acalorados sobre a liberdade de expressão e a segurança online. A legislação propõe uma expansão significativa das leis relacionadas ao combate do “discurso e crimes de ódio” no Canadá e estabelece um ambiente regulatório rígido para as empresas de mídia e plataformas de redes sociais.

A C-63 introduz o conceito de “discurso de ódio” como “conteúdo que expressa ódio ou difamação de um indivíduo ou grupo com base em características proibidas de discriminação”. Ela propõe a criação de três novos órgãos reguladores no país: a Comissão de Segurança Digital, o Provedor de Segurança Digital e o Escritório de Segurança Digital do Canadá. Segundo a legislação, essas entidades teriam poderes para fiscalizar, emitir ordens e aplicar penalidades às plataformas que não aderirem às novas diretrizes.

A lei também promove alterações no Código Penal do Canadá, ampliando penas para os “crimes de ódio”, que podem chegar à prisão perpétua em casos considerados “mais graves”, como "incitação ao genocídio", e até cinco anos para os demais.

Um dos aspectos mais controversos da lei é a autorização que ela dá à Comissão de Segurança Digital, que seria nomeada pelo governo, para acessar os registros de dados eletrônicos mantidos pelas plataformas de serviços de mídia social. Isso significa que a comissão teria autoridade para examinar mesmo sem mandado judicial, durante uma fiscalização, informações dos usuários que ficam armazenadas por essas plataformas, que a partir da aprovação da lei teriam que tomar "medidas para mitigar" as ações de ódio, sob pena de multas pesadas em caso de desobediência.

Essa permissão concedida à Comissão de Segurança Digital tem gerado preocupações em relação à privacidade e à liberdade dos canadenses na internet.

Outra mudança controversa proposta pela lei é a reintrodução da Seção 13 na Lei Canadense de Direitos Humanos, que passaria a permitir que oficiais da Comissão Canadense de Direitos Humanos e do Tribunal Canadense de Direitos Humanos façam determinações consideradas por críticos como subjetivas sobre quais formas de expressão constituem o suposto "discurso de ódio" e decidam sobre quais seriam as soluções propostas para se “combater essas expressões”. Tais soluções incluem multas e até a supressão da liberdade na internet para o alvo. A Seção 13 foi revogada pelo Parlamento do Canadá em 2014 por preocupações dos congressistas de que ela fosse utilizada justamente para suprimir a liberdade de expressão.

A lei C-63 tem sido amplamente criticada por sua natureza punitiva e por não garantir claramente os direitos processuais daqueles que possam ser alvos dela. Segundo críticos, a própria definição de discurso de ódio proposto pela C-63 é “ampla e subjetiva”, o que levanta preocupações sobre a possibilidade de que ela seja utilizada para censurar e criminalizar opiniões políticas e críticas.

Muriel Blaive, doutora em História, destacou em uma postagem feita em sua conta no X (antigo Twitter) que a característica “mais alarmante” da lei C-63 é sua natureza “retroativa”, que, segundo ela, permite que declarações passadas, aquelas publicadas antes da legislação entrar em vigor, sejam julgadas sob os novos padrões legais.

“A proposta de lei canadense é totalmente insana. Ela é retroativa, o que vai contra toda a nossa tradição legal Ocidental, segundo a qual você só pode ser punido se infringir uma lei que era válida no momento em que cometeu um crime. E não se trata apenas das coisas que você postou depois que a nova lei entrar em vigor, mas qualquer coisa que você tenha postado, desde o início da internet”, afirma a historiadora.

Apesar de não mencionar explicitamente a questão da punição retroativa, a lei C-63 deixa claro o seu intuito de combater o suposto “discurso de ódio contínuo”, o que poderia abrir espaço para que os órgãos reguladores possam abordar conteúdos publicados no passado e que permanecem no ar. Isso significa que, se alguém for denunciado por ter postado algo no passado que seja considerado a partir de agora ofensivo aos olhos da lei e recebeu uma ordem para remover o material, no entanto, continua a mantê-lo público (seja por qualquer motivo), poderá ser punido sob acusação de ter violado a C-63. A ideia, conforme a legislação, é evitar que o suposto “ódio persista na internet” e responsabilizar aqueles que “continuam a propagá-lo”.

Além da questão da retroatividade (mesmo que não explícita) que foi mencionada por Blaive, a C-63 também prevê outras medidas extremas. Por exemplo, ela propõe penas de prisão domiciliar e restrição de comunicação para indivíduos que sejam denunciados como suspeitos de poder cometer um suposto “crime de ódio” no futuro ou que sejam considerados suspeitos de disseminar “discurso de ódio” no futuro. Essas penas seriam aplicadas pelo Tribunal de Direitos Humanos, caso o órgão entenda que exista essa possibilidade.

A lei C-63 também contempla o uso de tornozeleira eletrônica e a obrigatoriedade da entrega mensal de amostras de urina para as autoridades, caso haja suspeita de que a pessoa, sob efeito de álcool ou drogas, possa publicar “discursos de ódio” na internet. Nesse contexto, a pessoa ficaria impedida de usar essas substâncias enquanto estiver sujeita a essas medidas, visando evitar a potencial "propagação" dos supostos “discursos de ódio”.

Conforme a lei C-63, qualquer indivíduo poderia realizar uma denúncia anônima ao governo sobre pessoas que eles consideram que estejam cometendo os supostos “crimes de ódio” ou disseminando os supostos “discursos de ódio” na internet, seja contra ele ou qualquer grupo ou pessoa. Se o indivíduo que foi denunciado for considerado culpado pela Justiça, ele poderia enfrentar as penas propostas pela lei, que vão de prisão de cinco anos ou perpétua a ter que pagar uma multa de 70 mil dólares canadenses, cujos 50 mil seriam destinados para o governo e 20 mil para as “vítimas” que foram alvos do crime.

Apoiadores da lei C-63 e o premiê Trudeau alegam que a legislação visa criar um ambiente seguro da internet e na mídia, inclusive para as crianças, já que ela redobra a fiscalização sobre conteúdos que envolvem a pornografia infantil, o abuso e a sexualização de menores.

No entanto, entidades de defesa da liberdade de expressão, personalidades e parlamentares conservadores afirmam que a mesma lei precisa passar por mudanças para que seus aspectos subjetivos sejam retirados ou reformulados.

“Embora o governo federal tenha apresentado este projeto como uma iniciativa para proteger as crianças, ele faz pouco para alcançar essa nobre causa e muito para inibir a liberdade de expressão”, disse a deputada do Partido Conservador Rachael Thomas, em uma nota reproduzida no X.

Thomas enfatizou que os conservadores defendem a proteção das crianças através da aplicação correta de leis já existentes. Ela criticou a criação de mais comissões que poderiam ser utilizadas com fins políticos.

Por causa dessa natureza retroativa da legislação e a permissão para denúncias anônimas, o autor e psicólogo canadense Jordan Peterson alertou que não demoraria muito para que ele fosse condenado à prisão no Canadá caso a C-63 passe no Parlamento e entre em vigor.

“É a proposta legislativa mais orwelliana já promovida no Ocidente”, disse Peterson no X sobre a lei, fazendo referência ao autor George Orwell.

A Associação Canadense de Liberdades Civis (CCLA, na sigla em inglês) criticou severamente a lei, argumentando que ela confere aos “escolhidos pelo governo” uma “autoridade vasta e inquestionável”, corroendo o “Estado de Direito e a ordem pública que deveriam proteger”.

“Embora a CCLA apoie os propósitos declarados de garantir a segurança pública, proteger crianças e apoiar comunidades marginalizadas, nossa avaliação inicial revela que o projeto de lei inclui violações excessivas da liberdade de expressão, privacidade, direitos de protesto e liberdade. Estes devem ser corrigidos antes que o projeto de lei seja aprovado”, diz a associação em uma nota disponibilizada em seu site.

“Um aspecto preocupante do Projeto de Lei C-63 é a vasta autoridade concedida a um novo órgão, composto por indicados do governo, para interpretar a lei, criar novas regras, aplicá-las e depois atuar como juiz, júri e executor. Conceder poderes tão amplos a um único órgão mina o princípio fundamental da responsabilidade democrática.

Além disso, as disposições do projeto de lei que incluem novos poderes de busca de dados eletrônicos sem necessidade de mandado representam ameaças significativas aos direitos de privacidade. O projeto de lei prevê intrusões inaceitáveis na vida digital das pessoas.

O Projeto de Lei C-63 corre o risco de censurar uma variedade de expressões, desde reportagens jornalísticas até conversas saudáveis entre jovens menores de 18 anos sobre sua própria sexualidade e relacionamentos. As amplas proibições criminais de discurso no projeto de lei correm o risco de sufocar o discurso público e criminalizar o ativismo político. O projeto de lei impõe penalidades draconianas para certos tipos de expressão, incluindo prisão perpétua por uma ofensa muito ampla e vagamente definida de "incitação ao genocídio", e cinco anos de prisão por outros atos de fala amplamente definidos. Isso não apenas ameaça a liberdade de expressão, mas também mina os princípios de proporcionalidade e justiça em nosso sistema legal”, acrescenta.

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