O enigma sobre a identificação da cabeça do rei Enrique IV, o primeiro Bourbon a assumir o trono da França, reviveu a polêmica entre as duas famílias que disputam a legitimidade da coroa francesa.
A pesquisa da jornalista Stéphane Gabet e do médico-legista Philippe Charlier, que garantem ter identificado a verdadeira cabeça do rei, traz novamente à tona os dois grupos que disputam o trono: os legitimistas, partidários de Luís Alfonso de Bourbon, e os "orleanistas", que consideram o herdeiro da casa de Orleans como sucessor.
Esta antiga pendência foi revivida com a polêmica identificação da cabeça de Enrique IV, o rei que governou a França entre 1589 e 1610 após pôr fim às Guerras de Religião entre católicos e protestantes, que arrasaram o país na segunda metade do século XVI e cujo episódio mais conhecido e trágico foi a "Noite de São Bartolomeu", no dia 24 de agosto de 1572.
Nessa noite, milhares de huguenotes (protestantes) que tinham chegado à Paris para assistir ao casamento entre um de seus principais defensores, o príncipe Enrique de Navarra (futuro Enrique IV) com a princesa Margarida de Valois, foram massacrados pelos católicos, em um episódio cujas verdadeiras motivações ainda continuam obscuras, de acordo com muitos especialistas.
Luís Alfonso de Bourbon, duque de Anjou, proprietário da cabeça que Stéphane e Charlier consideram como a de Enrique IV, iniciou os trâmites para poder restitui-la à basílica de Saint-Denis, no norte de Paris e que é o panteão dos reis da França.
O nobre, filho do falecido Alfonso de Bourbon, primo irmão do atual rei da Espanha, Juan Carlos I, espera presidir a cerimônia de restituição da cabeça, um ato que pode lhe apresentar perante a opinião pública como o legítimo herdeiro da coroa. Desde 1848, quando foi derrubado Luís Felipe de Orleans e criador da outra dinastia que também reivindica o trono, ninguém ocupou mais o posto de rei da França.
Enrique de Orleans, conde de Paris e atual chefe dessa dinastia, considera que as provas de autenticidade da cabeça do primeiro Bourbon "se aproximam mais de um romance que da verdade científica ou histórica", segundo disse ao jornal "Le Figaro".
O certo é que a cabeça tem uma história bastante novelesca.
Assassinado em 1610, Enrique IV foi enterrado na basílica parisiense de Saint-Denis, onde seu corpo permaneceu até 1793, quando o mausoléu real foi profanado, em pleno "terror" revolucionário, e muitos dos cadáveres foram decapitados e enterrados em uma vala comum.
Em 1817, com a restauração monárquica, Luís XVIII ordenou a exumação e reintegração dos restos reais ao mausoléu, mas a cabeça de Enrique IV não apareceu.
A pista da relíquia se perdeu até que em 1919 o antiquário Joseph Émile Bourdais acreditou tê-la encontrado entre os móveis e utensílios de uma pintora de Montmatre, onde a comprou por três francos.
Obstinado, o antiquário passou a vida inteira tentando provar a autenticidade de seu achado. Sem sucesso.
Já com idade avançada, Bourdais tentou ceder a cabeça ao Museu do Louvre. O museu a rejeitou e, por isso, o antiquário a cedeu aos Bellanger, um casal apaixonado pela história, que se comprometeu em comprovar a sua autenticidade.
Durante anos percorreram arquivos e bibliotecas em busca de pistas que mostrassem que a cabeça era do primeiro Bourbon da França.
Até que os avanços tecnológicos permitiram a análise de DNA e uma reconstrução facial através da computação gráfica, permitindo aos pesquisadores afirmar "com 100% de certeza que se trata da cabeça de Enrique IV", segundo disse Stéphane Gabet à Agência Efe.
Com esses novos fatos, os legitimistas pediram às autoridades francesas que Luís Alfonso possa presidir a reintegração dos restos ao mausoléu real.
Os orleanistas temem a realização da cerimônia e que se repita o sucedido em 2004, quando Luís Alfonso liderou os atos de restituição em Saint-Denis do coração do Delfim Luís Carlos de Bourbon, que para os legitimistas é Luís XVII, o filho de Luís XVI, falecido em 1795, aos 10 anos de idade, na prisão do Temple de Paris sem ter chegado ao reinado.
O conde de Paris se apoia, sobretudo, nos estudos do historiador Philippe Delorme, que foi taxativo ao dizer à Efe que "não se pode afirmar que a cabeça achada seja a de Enrique IV".
As provas de DNA não são conclusivas e a reconstrução facial "é pouco científica" para este especialista, cujos trabalhos permitiram identificar o coração de Luís XVII.
A batalha entre dinastias se torna uma controvérsia entre cientistas em torno de uma cabeça que, por enquanto, os Bourbon guardam em um cofre bancário.
Uma disputa sobre um monarca que marcou a história por assinar o Edito de Nantes - no dia 13 de abril de 1598 - que selava uma frágil reconciliação entre católicos e huguenotes, encerrando anos de guerras internas na França.