Na noite em que o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, alcançou uma vitória esmagadora nas eleições de 2015, ele disse que os eleitores escolheram "um governo que acredita profundamente na diversidade de nosso país".
Nos quatro anos seguintes, ele se colocou como um porta-estandarte global para a inclusão, tornando o assunto o centro de sua plataforma política e personalidade pública, como poucos líderes fizeram antes. Ele montou um gabinete diversificado, com equilíbrio de gênero. Admitiu mais de 25.000 refugiados da Síria e foi ao aeroporto para receber os primeiros que chegaram. Seu governo colocou Viola Desmond - mulher negra que estimulou o fim da segregação na Nova Escócia - na nota de 10 dólares.
Neste ano, porém, esta imagem construída de Trudeau começou a desmoronar - e em pleno ano eleitoral. Em um escândalo no começo deste ano, soube-se que o primeiro-ministro pressionou sua procuradora-geral, uma mulher indígena, a fechar um acordo com uma empresa de construção de sua província natal, acusada de suborno.
Agora, o surgimento de imagens de anos ou décadas atrás, nas quais Trudeau usava blackface, representam um golpe potencialmente incapacitante na já instável tentativa de reeleição do primeiro-ministro.
"Essas coisas são incendiárias", disse Darrell Bricker, executivo-chefe da empresa de pesquisas Ipsos Public Affairs, em Toronto. "De repente, há apenas uma imagem e você não precisa explicar. Todo mundo sabe o que é".
O Partido Liberal de Trudeau está em uma disputa acirrada com o Partido Conservador de Andrew Scheer para as eleições federais de 21 de outubro. Neste cenário, aumenta o peso dos votos da classe média etnicamente diversificada dos subúrbios de Toronto e Vancouver, onde uma pequena porcentagem de partidários liberais desencantados poderia mudar o resultado da eleição.
Blackface
Os conservadores veiculam anúncios eleitorais alertando que Trudeau "não é o mesmo que foi anunciado". Agora, as imagens - duas fotos publicadas na noite de quarta-feira e um vídeo que surgiu na manhã de quinta-feira - pareciam validar a mensagem.
Trudeau, 47 anos, pediu desculpas novamente na quinta-feira pelos incidentes: uma festa de 2001 em que ele apareceu com o rosto escurecido e usando um turbante, uma apresentação do ensino médio da canção "The Banana Boat Song (Day-O)" e uma breve vídeo que sua campanha disse ter sido gravado no início dos anos 90.
"Escurecer o rosto, independentemente do contexto ou das circunstâncias, é sempre inaceitável por causa da história racista do blackface", disse Trudeau de Winnipeg em uma aparição transmitida ao vivo pelo Canadá. "Eu deveria ter entendido isso então e não deveria ter feito".
Balpreet Singh, consultor jurídico da Organização Mundial Sikh do Canadá, disse estar "desapontado" com as novas imagens, mas não acha que o primeiro-ministro seja "racista".
"Todos nós que somos minorias racializadas sabemos como é ser discriminado", afirmou. "Blackface e brownface realmente zombam de nossa experiência. Não podemos tirar a cor da pele quando a festa acabar."
Trudeau disse na quinta-feira que não poderia ser "definitivo" se ainda há mais imagens ou vídeos a serem revelados, porque ele não se lembrava de algumas das imagens que surgiram. Ele disse que não falou publicamente sobre os incidentes porque se sentiu "envergonhado" e não entendeu seu privilégio.
"Não é algo que represente a pessoa que me tornei, o líder que tentei ser", disse ele.
Alguns líderes liberais saíram em defesa de Trudeau. Greg Fergus, vice-presidente da Associação Parlamentar Canadá-África disse que conversou com o primeiro-ministro e aceitou seu pedido de desculpas. "Se isso tivesse acontecido na semana passada, me chocaria profundamente. Mas coisas que aconteceram 20 anos atrás? São tempos diferentes".
"Falso feminista"
As imagens vieram à tona apenas um mês depois que o órgão de ética do Canadá decidiu que Trudeau violou as leis de ética quando pressionou a então procuradora-geral Jody Wilson-Raybould a buscar um acordo extrajudicial com a empresa de construção SNC-Lavalin.
Esse incidente provocou várias renúncias de alto nível do governo e abriu uma ferida na imagem de Trudeau. Tendo vendido aos canadenses a promessa de liderança além de qualquer censura e aberto a diversas visões, ele foi acusado de politicagem nos bastidores, de intimidar Wilson-Raybould e de ser um falso feminista.
O apoio a Trudeau diminuiu à medida que o escândalo se desenrolou no início deste ano, mas voltou a subir durante o verão. Agora ele enfrenta um novo desafio.
Wilson-Raybould, que foi expulsa do partido liberal e está concorrendo à reeleição como independente, disse nesta quarta-feira que estava "extremamente decepcionada" com as fotos.
"Estou incrivelmente orgulhosa de ser uma pessoa indígena neste país, que sofreu racismo e discriminação", disse ela a repórteres. "É completamente inaceitável que alguém em posição de autoridade e poder faça algo assim".
Outras contradições e ameaças à reeleição
Críticos de Trudeau também o acusam de agir de uma maneira em privado e de outra em público, de ser arrogante, de agir diferentemente do que fala. Seu governo taxou o carbono e declarou uma "emergência climática" nacional, mas comprou um oleoduto. Ele se descreve como feminista, mas seu governo se recusou a bloquear a venda de veículos blindados leves para a Arábia Saudita, um país condenado internacionalmente por seu tratamento às mulheres. Ele chegou ao poder prometendo reforma eleitoral, mas abandonou a promessa uma vez no cargo.
Bricker, do Ipsos, disse que, com a divulgação das imagens usando "blackface", Trudeau entregou aos seus oponentes uma nova munição.
"Os conservadores estão realmente motivados e realmente querem que Trudeau caia fora", disse Bricker. "Os liberais não estavam tão motivados, mesmo antes de hoje. Portanto, esse é um grande problema para eles".
Shachi Kurl, diretora executiva do Instituto Angus Reid, disse que sua pesquisa mostrou que os eleitores dizem que a tolerância, a compaixão e a influência de Trudeau são pontos fortes quando comparados a Scheer.
"A questão pendente é se este será o equivalente político de um câncer que corroerá o apoio político a ele", disse ela. "Para sua própria sobrevivência política, isso não é algo que ele possa possa bancar dia após dia, semana após semana, durante a campanha".
Um indicador importante, disse ela, será como os jovens eleitores, cruciais para a vitória de Trudeau em 2015, reagirão às revelações. Se eles ficarem em casa ou votarem em um partido de esquerda, ele poderá ficar em apuros. Ela disse que pode haver divisões em como as diferentes gerações das comunidades minoritárias do Canadá veem as fotos e imagens.
O número de eleitores canadenses que imigraram recentemente para o Canadá, a partir da Ásia Central e do Oriente Médio, aumentou 22 pontos percentuais entre 2011 e 2015, segundo dados do governo. Para os imigrantes da África, o número saltou 25 pontos.
Blackface no Canadá
O Blackface tem uma longa história no Canadá e era uma forma comum de entretenimento em escolas, igrejas e grupos comunitários até a década de 1970. O compositor do hino nacional do Canadá, Calixa Lavallée, passou grande parte de seu início de carreira usando "blackface" em trupes de menestréis no Canadá e nos Estados Unidos, o que era comum entre os dois países.
Philip S.S. Howard, professor da Universidade McGill, escreveu em 2017 que isso revela que "a fronteira entre o Canadá e os EUA é, de fato, bastante porosa ao racismo ao estilo dos EUA".
Casos mais recentes de canadenses em blackface costumam chamar a atenção no país, mas nunca envolveram uma figura tão importante quanto Trudeau.
A líder do Partido Verde Elizabeth May disse que se sentiu "fisicamente enojada" quando viu as fotos.
"Naquele ponto da vida dele, acho que poderia afirmar que ele era inconscientemente racista", disse ela. "Eu não diria que o homem que hoje conheço seja racista, mas também não podia imaginar essa foto".