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Adiba, uma yazidi que foi capturada pelo EI e vendida seis vezes antes de escapar, tenta uma nova vida no Canadá | TARA WALTON/NYT
Adiba, uma yazidi que foi capturada pelo EI e vendida seis vezes antes de escapar, tenta uma nova vida no Canadá| Foto: TARA WALTON/NYT

Como líder de uma das maiores organizações de refugiados do Canadá, Fariborz Birjandian, ele próprio um refugiado, tem anos de experiência recebendo as pessoas em situação de maior vulnerabilidade no mundo – albaneses do Kosovo fugindo da limpeza étnica, karens birmaneses despejados de um campo de refugiados tailandês e ainda sírios fugindo da guerra civil.  

Mas nada o preparou para os yazidis.  

Há pouco tempo, ele conta que entrou em uma sala de aula de inglês no prédio onde está localizada sua organização, perto do centro de Calgary, assim que uma mulher de 28 anos descreveu os gritos de uma garota sendo estuprada por um soldado do Estado Islâmico. Em seguida, a mulher caiu inconsciente.  

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Os olhos rolavam nas órbitas, as costas arqueavam no chão, ela começou a hiperventilar, sua voz cresceu uma oitava até que emergiu novamente como um ganido. Ela agarrou os cabelos e travou os dentes no próprio antebraço.  

"Não deixe que ela se morda", intercedeu Kheriya Khidir, intérprete, abaixando-se para segurar um dos braços da mulher enquanto acariciava carinhosamente o rosto dela. Birjandian correu para chamar uma ambulância. Após isso, escondeu-se nas escadas de incêndio para assentar suas emoções completamente abaladas.  

Sistema de acolhimento

A mulher, Jihan, é uma de quase 1,2 mil pessoas, na maioria mulheres e crianças, vítimas do Estado Islâmico, que foram levadas ao Canadá como parte de um programa para refugiados criado especialmente para os yazidis, população de minoria religiosa do norte do Iraque que os militantes do Estado Islâmico decidiram dizimar em agosto de 2014.  

O Ministro da Imigração do Canadá – que também é um ex-refugiado – assegurou aos canadenses que o programa abordaria o "inimaginável trauma, físico e emocional" que a maioria das vítimas trazia consigo.  

Porém, pouco mais de um ano depois, os yazidis têm se provado um desafio mais complexo do que imaginado para o célebre sistema de acolhimento de refugiados do país e para aqueles que trabalham nele, como Birjandian.  

Enquanto a certeza de segurança e uma nova rotina ajudam outros refugiados a se recuperar, os yazidis precisam de mais e de diferentes tratamentos; os trabalhadores da área dizem que são o grupo mais traumatizado até agora. Terapeutas, médicos e outros profissionais estão ouvindo histórias tão perturbadoras que eles próprios precisam de tratamento.  

"Nunca foi tão extremo", disse a Dra. Annalee Coakley, médica chefe da clínica de saúde para refugiados de Calgary. Ela explica que muitos yazidis na clínica revelam sintomas de transtorno de estresse pós-traumático – flashbacks, pesadelos, crises de ansiedade, surtos de raiva.  

Em alguns lugares, os esforços para ajudar os refugiados parecem estar funcionando. Em outros, parecem não se firmar.  

"Os serviços foram díspares e não coordenados. Não entendo por que o governo não colocou mais ênfase nesse programa", disse Michelle Rempel, oposição no Parlamento, que defende os yazidis.  

Membros do governo, por sua vez, dizem que o programa é o mais elaborado da história do país e que os imprevistos decorrem dos altos níveis de trauma, não do pouco planejamento.  

"Não é perfeito, mas somos muito bons nisto", declarou David Manicom, do departamento de imigração e assistente do secretário de estabelecimento e integração de imigrantes.  

Ataques

Como documentado por investigadores da ONU, quando militantes do Estado Islâmico chegaram às aldeias nas zonas áridas das Montanhas Sinjar, juntaram todos os homens e lhes deram a opção de se converter ao islã ou morrer. A antiga fé dos yazidis fez deles apóstatas aos olhos dos militantes.  

Mulheres e meninas – algumas com apenas nove anos – foram catalogadas e vendidas em um sistema codificado de escravidão sexual.  

Jihan foi vendida tantas vezes que perdeu a conta. Como outros entrevistados para este artigo, ela pediu ao The New York Times para usar apenas seu primeiro nome para proteger membros da família que ainda estão detidos pelo EI.  

Ela e algumas outras mulheres em Calgary tiveram quadros convulsivos, quando caíam no chão e pareciam reviver seus estupros.  

O governo canadense supervisiona o programa de restabelecimento de refugiados no país à distância, financiando organizações não governamentais especializadas para fazer o trabalho do dia a dia.  

Assistência

Tradicionalmente, assistentes sociais ajudam na chegada dos refugiados, lidando com aspectos práticos de sua nova vida, procura por moradia, matrículas em escola e em aulas de inglês, abertura de conta bancária. Para as minorias cujos sintomas de saúde mental não são aliviados, um médico de família deve intervir. 

Mesmo antes de chegarem, ficou claro que os yazidis precisariam de mais cuidados. No entanto, o governo deixou que as ONGs elaborassem seus próprios programas especializados. Em alguns lugares, isso aconteceu. Em outros, não foi bem assim.  

"Onde está o governo canadense?" questionou Melkaya, 27, que chegou aos subúrbios de Toronto em julho passado com seu filho e passa a maior parte de seus dias em seu apartamento que fica no porão de um prédio, revivendo os momentos do seus 28 meses em cativeiro.  

"Disseram-nos que nos ajudariam com atendimento psicológico. Não vimos nada disso. Nós não somos humanos?", desabafou. 

O chefe da organização de restabelecimento dos refugiados em Toronto, Mario Calla, disse que o programa contava com médicos de família para encontrar ajuda psicológica para os pacientes refugiados e que a organização está agora introduzindo um grupo de apoio.  

Yazidis reunidos

Em Calgary, dinheiro extra é colocado para o aluguel a fim de alocar os yazidis em apartamentos próximos, formando uma comunidade. Há um caso de 45 vivendo em uma rua varrida pela neve no sudoeste da cidade. Os assistentes também organizam aulas de inglês somente para yazidis, para o conforto dos refugiados.  

Mesmo assim, nada disso foi suficiente. Então, em agosto, uma terapeuta iniciou um programa de "bem-estar", feito sob medida para os yazidis. São ensinadas estratégias básicas para lidar com os traumas, como sentir o cheiro de óleos essenciais e exercícios físicos básicos para conexão dos dois lados do cérebro.  

Em novembro, a organização contratou um terceiro terapeuta para oferecer tratamento individual. Poucos, no entanto, têm utilizado o serviço – nem mesmo Jihan vai ao atendimento.  

"Todos nós temos problemas mentais", disse Jihan, durante o jantar com cinco vizinhos yazidis. Os nomes de sete entes queridos – todos levados pelo EI – foram rudemente tatuados no peito, braços e mãos.  

A falta de intérpretes que falam curmânji – o dialeto yazidi curdo – revelou-se um obstáculo também. Um ano atrás, antes da chegada das vítimas do EI, havia apenas entre mil e mil e quinhentos yazidis no Canadá, de acordo com estimativas do governo. Dezesseis intérpretes de curmânji foram contratados, mas não foi o suficiente.  

Muitos yazidis se recusam a falar árabe ou utilizar serviços de tradução oferecidos pelos curdos muçulmanos que falam badini, um dialeto curdo similar.  

"Meu coração não me permite dizer a uma pessoa muçulmana o que aconteceu comigo", disse Kamo, outra refugiada yazidi que sobreviveu a coisas mais horríveis do que a própria escravidão.  

Quatro dos seus sete filhos e seu marido foram capturados e ela não sabe o destino de nenhum deles. A memória da última vez em que viu sua filha mais velha, Suzan, leva-a às lágrimas. A garota de 14 anos de idade gritava enquanto soldados do EI a rodeavam e arrancavam sua roupa, disse ela.  

"Escapei dessas pessoas há dois anos, mas ainda me sinto sequestrada. Meu coração não está comigo. Ele está com meus filhos", disse Kamo, 38 anos.  

Histórias como esta mostram porque a clínica Mosaic introduziu workshops sobre algo que chamam de "trauma vicário" (espécie de trauma secundário, vivenciado quando se ouve empaticamente uma experiência traumática) para a equipe que trabalha com os refugiados yazidis.  

"Nunca ouvi tanta depravação. Você tenta reconciliar sua visão de mundo com o que está absorvendo e acaba tendo que mudá-la. Não existe justiça. A vida não é justa", disse Coaklee, funcionária da clínica.  

Birjandian, o diretor executivo da associação de imigração de Calgary, está entre um crescente grupo de pessoas que trabalha com refugiados e que tem pressionado o governo a expandir o programa de acolhimento dos yazidis, para que tragam não apenas as esposas e as crianças dependentes, mas também membros da família mais extensa.  

"Nosso receio é que o governo acabe tendo medo desta população. Mas é a ela que devemos ajudar se quisermos continuar chamando o que fazemos de esforço humanitário. Eles são os mais traumatizados e os mais resilientes", concluiu Birjandian.  

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  • Adiba, uma yazidi que foi capturada pelo EI e vendida seis vezes antes de escapar
  • Adiba, uma yazidi que foi capturada pelo EI e vendida seis vezes antes de escapar
  • Melkaya, que chegou aos subúrbios de Toronto em julho passado com seu filho, após 28 meses em cativeiro
  • Basema, um refugiado yazidi, em uma rua perto de sua nova casa em um bairro suburbano em Richmond Hill, Ontário, Canadá
  • Kamo, uma refugiada yazidi cujo marido e quatro de seus sete filhos foram capturados
  • Jihan, uma refugiada yazidi que diz ter sido vendida tantas vezes que perdeu a conta, mostra suas tatuagens dos nomes de sete entes queridos, todos capturados pelo Estado Islâmico
  • Jihan mostra suas tatuagens dos nomes de sete entes queridos, todos capturados pelo Estado Islâmico
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