Marichal, um rapper cubano de 45 anos, conhece bem a repressão cubana, que no último domingo foi escancarada para o mundo em vídeos e fotos da violência estatal contra os manifestantes.
Anos atrás, antes de conseguir emigrar para os Estados Unidos em uma travessia em alto mar que durou 80 horas, ele foi perseguido pelas autoridades da ilha por seu posicionamento contra o regime.
Quando se estabeleceu no novo país, passou a denunciar, por meio das suas letras, a ditadura cubana e o modelo de sistema socialista. Mais recentemente, ele se juntou a vários rappers cubanos para lançar um álbum chamado “Resistência”, cujo objetivo é dar voz às mazelas do país.
Para Marichal, o "cansaço, o desespero e a frustração que os cubanos carregam há 62 anos" levaram o povo às ruas.
Conheça a história deste artista nesta entrevista concedida por ele à Gazeta do Povo.
(A entrevista foi feita na semana passada. Nesta terça-feira, Marichal enviou um complemento sobre os protestos, a pedido da jornalista.)
Me conta um pouco sobre sua vida em Cuba e o que te fez sair de lá?
Eu me dedicava a fazer música em Cuba e fazia atividades culturais. Mas o que aconteceu foi que comecei a visitar a casa de um dos 75 presos da Primavera Negra de 2003 [quando Fidel Castro promoveu uma série de prisões de dissidentes, incluindo médicos e jornalistas], que eram prisioneiros políticos. Ele estava em sua casa, mas por causa de uma licença médica. E a partir do contato com ele eu comecei a conhecer o tema das Damas de Branco [movimento de oposição em Cuba fundado em 2003 por esposas, mães e irmãs de dissidentes presos].
Decidi fazer uma canção em homenagem às Damas de Branco. Então essa música tocou em uma rádio aqui dos Estados Unidos, de Miami, e em seguida a segurança do Estado cubano, que praticamente tem o mesmo modus operandi da Stasi alemã, começa a me intimidar, a me visitar e a complicar a minha vida. Os espaços culturais de Cuba começaram a se fechar para mim. Eu não entendia por quê. Geralmente as músicas que eu escrevia naquela época eram temas comerciais, temas de juventude, coisas que tocam em discotecas.
Até que então, alguém da emissora de rádio – às vezes essa emissora de rádio transmitia coisas minhas em Cuba – me diz que em uma reunião dos trabalhadores da emissora, orientaram que minha voz não poderia mais aparecer lá. Por causa de minha postura contra o governo. Então eu decidi fazer as coisas por baixo dos panos. Mas mesmo assim, apagavam meus áudios, não me deixavam fazer coisas, me intimidavam.
Fui despedido do meu trabalho, não me davam espaço cultural, não me deixavam trabalhar em nenhum lugar. Se havia uma suspeita de saída ilegal da ilha [pelo mar], em seguida vinham à minha casa, porque eu morava perto do mar, e me prendiam. Mesmo que fosse apenas por suspeitas.
Eu estive 12 vezes detido por suspeitas. E em duas ocasiões em que tentei fugir, estive preso nas Bahamas, uma vez por 27 dias e outra vez por três meses. Eles, para evitar que se crie um caso político, não dizem que você está preso porque quis fugir, mas sim porque você estava em uma embarcação ilegal na costa de Cuba. Então aplicam uma multa de 3 mil pesos a cada pessoa flagrada tentando fugir. Não pude trabalhar mais e decidi me dedicar a sair da ilha, até que cheguei aqui.
Como foi a travessia?
Eu saí com 24 pessoas. Nós partimos de uma ilhota que está fora da ilha de Cuba – a parte norte de Cuba tem várias ilhotas, algumas delas têm hotéis, que são do regime, mas outras são virgens, com muitos montes e mangues. Fomos até lá, e passamos uma noite até que o mar se acalmasse no outro dia. Saímos esperando uma travessia de um dia, mas que se converteu em uma travessia de quase 4 dias - foram 80 horas. Nós estávamos perto dos EUA em 4 de julho. À primeira vista, quando se está na costa, parece que se está perto, mas você ainda está muito longe. Estávamos a 20 milhas e só chegamos no dia seguinte. Quando estávamos chegando na Flórida, vimos as silhuetas de tubarões da embarcação rústica em que estávamos.
Além disso, tivemos que lidar com a sede porque levamos suprimentos para um dia de travessia e não para quatro. Quando acaba a água a sede é intensa, as pessoas começam a delirar e a ver embarcações que não existem e coisas assim. Mas o que concordávamos era sobre a presença dos tubarões. Quando entramos em águas jurisdicionais da Flórida, vimos muitos tubarões, só saímos do barco quando a água deu pé.
Como foi a chegada nos EUA?
Eu cheguei descalço, literalmente, só com uma bermuda de praia, sem camisa e sapato. Quando chegamos à praia, tivemos que subir um monte descalço para chegar à estrada. Foi quando avisamos ao xerife que estava patrulhando a região e rapidamente chamaram a imigração.
As autoridades processaram nossa documentação, perguntaram de onde vínhamos, quem éramos. Tivemos sorte porque naquela época estava funcionando uma lei que permitia que os cubanos que conseguissem chegar ao solo americano seriam admitidos dentro do país. Se te pegassem no mar, como também aconteceu comigo, te mandavam de volta para Cuba.
Hoje eu vivo com orgulho de recordar que cheguei aqui em 5 de julho [de 2006], queimado de sol, cheio de picadas de mosquitos, descalço, e ver como 16 anos depois, tenho meu próprio apartamento, com minha esposa, com carro do ano, um estúdio de gravação próprio, um emprego que me paga bem e todos os recursos ao meu alcance. Vivo onde posso me expressar sem nenhuma dificuldade, sem sentir medo, onde nenhum policial me para para pedir identificação porque sou suspeito de algo, nada disso. Isso é o máximo. Viver dessa maneira é como ganhar na loteria.
Você retornou a Cuba em algum momento?
Não pude regressar a Cuba. Nos primeiros meses em que estive nos Estados Unidos, fui a um programa de televisão e cantei a música das Damas de Branco, que escrevi em Cuba. E isso me marcou. Eu segui fazendo música até que chegou um ponto em que o regime me relacionou a um homem que efetuou disparos contra a embaixada cubana aqui nos EUA no ano passado.
Acontece que esse cubano compartilhava canções minhas no Facebook. Eu não o conhecia, há muitas pessoas que eu não conheço que compartilham minhas músicas. Então, o chanceler de Cuba me acusou, em coletiva de imprensa, dizendo que eu teria vínculos com esse senhor, que eu nem sei quem é – a ponto de que eu continuo livre e este senhor está preso. Mas a acusação foi feita pelo ministro das relações exteriores de Cuba e em Cuba, quando inventam um caso dessa índole, se eu caísse nas mãos deles, tenho certeza de que estaria preso.
Por isso não posso regressar a Cuba e não penso em regressar até que Cuba seja livre. Nas minhas canções me dedico a denunciar os crimes do socialismo. Não só em Cuba, mas na Venezuela e outros lugares em que estão acontecendo coisas assim.
Muitas de suas músicas falam contra o socialismo, denunciam o que está acontecendo em Cuba e em outros países socialistas. O que você vê de pior nesse sistema de governo?
No sistema de governo socialista, na teoria, tudo é perfeito, tudo é lindo, lendo a teoria de Marx. Mas acredito que isso foi feito intencionalmente para adoçar os ouvidos das pessoas ingênuas. Nesse tipo de sistema, eles tentam entrar pela via democrática e, se conseguem, é preciso tirá-los à força, porque eles mesmos destroem a democracia por dentro. Quando não podem chegar por vias democráticas, o fazem pela força. Então o sistema que tanto apregoa ser justo, ser bom com o povo, termina oprimindo o povo.
Quando estava em Cuba, eu não sabia nada dessas coisas. Quando eu saí de lá, comecei a pesquisar na internet, o que não podia fazer em Cuba, e comecei a investigar por que os cubanos estavam tão mal. [Descobri que] o sistema socialista é como um roteiro escrito que passa de mão em mão por todos esses ditadores [cita China, Coreia do Norte, Vietnã]. Me dei conta que [o sistema socialista] não era desenhado para funcionar. Ao final, terminam enriquecendo e oprimindo o povo, não só em Cuba, mas em todos os sistemas socialistas.
Você gravou uma canção chamada "Nova ordem mundial” denunciando instituições internacionais, como a ONU. Por quê? Você enxerga uma relação com o socialismo?
Há muita cumplicidade entre as elites grandes do mundo, e [na música] me refiro às potências, países grandes, como China, Rússia, que obviamente têm seus ditadores e seu poderio. Me refiro ao papa e à ONU, que quando acontece algo, fecham os olhos, como se não soubessem o que está acontecendo.
No Chile, por exemplo, fizeram mil coisas contra as igrejas [nos protestos de 2019 e 2020] e não vemos o papa se pronunciando, não vemos a instituição católica alçando a voz, não vemos a ONU condenando essas coisas. O que a ONU faz é dar assento aos ditadores e às pessoas que violam os direitos humanos. Então eu vejo como uma cumplicidade de todas essas instituições. As pessoas decentes se dão conta disso e já não confiam nessas instituições.
Está acompanhando o movimento de artistas independentes de Cuba? Tem contato com eles?
O que acontece é que em Cuba, o Estado quer se apoderar de todos os espaços da vida dos cubanos; fazer música, religião, qualquer coisa. Eles foram inteligentes e criaram uma Agência Cubana de Rap. Para quem olha de fora pode parecer maravilhoso, como se o Estado cubano estivesse se preocupando com os rappers cubanos.
Mas quando o discurso dos rappers cubanos tem a ver com a dor do povo, eles ficam incomodados e a agência os expulsa. Isso aconteceu várias vezes. Não dão espaço para trabalhar, os varrem do cenário, às vezes nem os deixam entrar em um evento cultural que tem a ver com o gênero de rap. Isso aconteceu com Los Aldeanos [grupo de rap cubano que fala de problemas sociais em suas letras]. A agência cubana de rap censura o próprio gênero. Historicamente se sabe que o gênero de rap foi criado para canalizar dores, sentimentos e problemas sociais. Mas em Cuba isso é proibido e quem o fizer, os expulsam.
Como sou um artista independente, não tenho nada com a agência. Eu me propus a criar um movimento paralelo à Agência de Rap, contatando rappers a quem a Agência tornou a vida impossível para criarmos um álbum chamado "Resistência", onde todos os rappers que queiram dizer algo a favor de seu povo, ou que tenham alguma queixa sobre o que está acontecendo em Cuba, tenham a oportunidade de fazê-lo. E assim produzi um disco que se chama "A Resistência'', com 19 rappers neste primeiro volume. Assim fazemos resistência à censura, à repressão, ao doutrinamento. Todos os temas do álbum falam disso.
Acredita que esse movimento pode mudar Cuba?
Eu acredito que sim, porque há muitas pessoas, outros rappers da resistência, e há pessoas que dizem que as músicas fizeram despertar nelas um sentimento de rebeldia, porque aprenderam coisas, conheceram direitos que desconheciam. O povo cubano não conhece seus direitos e graças a essas canções o povo entendeu muitas coisas. O povo sabe quem é o culpado por suas desgraças, falamos sobre formas de solucioná-las, que [os cubanos] alcem sua voz, que reclamem por seus filhos, falamos muito disso nas canções. Como as canções despertaram o povo cubano, aí vemos a importância de canções como estas.
Qual avaliação você faz dos protestos que estão ocorrendo agora em Cuba?
O que está acontecendo em Cuba é sintoma do cansaço, do desespero e da frustração que o povo cubano vem arrastando há 62 anos. Um regime que enriqueceu às custas do povo; um regime cuja família, como dinastia, como máfia, teve todos os privilégios que há 62 anos negaram a sua população.
E a população, graças às redes sociais, à internet, começou a divulgar vídeos dos luxos destas famílias. A população começou a se sentir enganada e decepcionada, inclusive os seguidores da revolução cubana. E no fim o próprio povo cubano se revoltou contra esse grupo de mafiosos. E somam-se a isso o problema da Covid, os mortos nos hospitais, a escassez de medicamentos, os cortes de eletricidade, a escassez de alimentos...
Há muitas coisas mais, como a falta de liberdade para expressar-se, para criar as próprias riquezas pessoais, o assédio da polícia política, dos inspetores a serviço da polícia, o fuzilamento de reputação na mídia de oposição. Tudo isso foi se somando e levou o povo a despertar uma ira; o povo está nas ruas reclamando seus direitos.
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