A adolescente saudita conta que, toda vez que o pai lhe batia ou lhe amarrava os tornozelos e pulsos para puni-la por alguma suposta desobediência, só sonhava em fugir. Porém, por mais desesperada que estivesse, a mesma questão a impedia de fazê-lo: como sair?
Se tentasse escapar e ficasse dentro do país, a polícia a levaria de volta para casa; para piorar, a lei federal a impedia de viajar para o exterior sem o consentimento do pai.
Foi durante as férias da família na Turquia, quando tinha 17 anos, que Shahad al-Muhaimeed percebeu que tinha uma chance – e se arriscou. Enquanto a família dormia, pegou um táxi, atravessou a fronteira com a Geórgia e se declarou refugiada, deixando a Arábia Saudita para trás para começar uma vida nova.
"Hoje vivo do jeito que quero, em um lugar decente, onde as mulheres têm direitos", diz ela, atualmente com 19 anos, por telefone, da Suécia, onde mora.
A atenção do mundo se voltou para a situação das sauditas depois que outra jovem, Rahaf Alqunun, foi barrada na Tailândia quando tentava chegar à Austrália para pedir asilo por lá. Depois de uma campanha internacional nas redes sociais, a ONU a declarou refugiada. Com isso, deixou a Tailândia rumo ao Canadá, onde foi recebida.
O fenômeno das mulheres que tentam fugir da Arábia Saudita não é novo, tendo ganhado a atenção mundial já nos idos de 1970, quando uma princesa foi pega tentando fugir do reino com o amante. O casal foi condenado por adultério e executado.
Só que o número de mulheres que pensam e assumem o risco imenso de deixar o país parece ter crescido de uns anos para cá; segundo grupos defensores dos direitos humanos, essas jovens, frustradas com as restrições sociais e legais, apelam para as redes sociais para obter ajuda no planejamento – e muitas vezes até no registro das tentativas de fuga.
"Há quinze anos nem se ouvia falar das sauditas, mas hoje elas estão descobrindo várias formas de pedir ajuda", diz Adam Coogle, monitor da Human Rights Watch para a Arábia Saudita.
Plano de fuga
Há as que fogem discretamente, viajando para os EUA ou outro país antes de pedir asilo, que nunca é garantido. Desde que foram detidas na Turquia, em 2017, as irmãs Ashwaq, de 31 anos, e Areej Hamoud, de 29, brigam na justiça para evitar a deportação, alegando correr risco de vida se retornarem para a Arábia Saudita.
As que conseguem fugir têm não só de encarar os esforços da família para levá-las de volta, mas os do governo, amplos e com muitos recursos, quase sempre envolvendo diplomatas locais que pressionam pela repatriação.
E as que voltam ainda enfrentam acusações criminais de desobediência parental e/ou manchar a reputação do país.
"Nós, mulheres sauditas, ainda somos tratadas como propriedade do Estado. Não interessa se a fugitiva tem opiniões políticas ou não; as autoridades vão atrás para forçá-la a voltar para casa", diz Moudi Aljohani, que foi para os EUA para estudar e de lá requereu asilo.
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As formas que escolhem para fugir variam, mas as entrevistas com cinco que tiveram sucesso apontam para circunstâncias comuns. Muitas discutiram seus planos em grupos privados de bate-papo com outras mulheres que já estavam fora do país ou estavam pensando em sair.
Meses antes de Alqunun deixar a família durante uma viagem para o Kuwait, por exemplo, uma amiga dela que fugira e conseguira chegar à Austrália como refugiada começou a lhe dar conselhos de como proceder.
Muitas fogem da Turquia, destino de férias popular entre os sauditas, rumo à Geórgia, onde os sauditas podem entrar sem visto. Outras tantas querem ir para a Austrália porque podem pedir o visto pela internet, única opção para aquelas que não podem ir pessoalmente à embaixada.
Guarda masculina
Algumas sauditas dizem que fugiram por causa da violência dos parentes homens e que o país não lhes oferece proteção nem justiça.
Outras queriam apenas se livrar dos códigos sociais islâmicos muito rígidos, que limitam o que elas podem vestir, que trabalhos podem fazer e com quem têm permissão de socializar, mas todas mencionaram o desejo de fugir das leis de tutela masculina, que dá aos homens imenso poder sobre suas parentes e/ou companheiras.
"É essa coisa da guarda masculina que faz todas fugirem. É a principal motivação para sair de lá", confirma Muhaimeed, da Suécia.
Na Arábia Saudita, é exigido de todas as mulheres um tutor, que é quem permite que elas se casem, viajem e passem por procedimentos médicos específicos. Geralmente, é o pai ou o marido, mas também pode ser um irmão ou até o filho.
O príncipe Mohammed bin Salman, regente do país, prometeu melhorar as condições de vida das sauditas – e começou desarmando a polícia religiosa, antes tão temida, que aterrorizava as mulheres que considerava "vestidas de forma inapropriada". No ano passado, suspendeu a proibição que as impedia de dirigir e agora as sauditas já podem assistir a espetáculos na mesma plateia que os homens e seguir carreiras que seriam impensáveis para suas mães.
Quando questionado sobre as leis de tutela masculina, no ano passado, o filho do rei disse que o país teria de "encontrar uma maneira de abordar o tema que não prejudique nem as famílias, nem a cultura".
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Essas medidas aumentaram sua popularidade entre suas conterrâneas, ainda que muitas não considerem a tradição um peso, pois são muito bem tratadas e cuidadas pelos parentes. Há as que fogem das regras procurando emprego nos países vizinhos, como os Emirados Árabes Unidos, onde as regras sociais são mais amenas.
Entretanto, os críticos do sistema dizem que ele não oferece recursos àquelas que têm guardiões controladores ou violentos.
O risco da fuga
Uma vez no exterior, a mulher geralmente é vítima de uma chuva de insultos e ameaças de morte dos parentes e de outros sauditas que acham que ela é uma vergonha para o país.
E embora os grupos de direitos humanos compreendam por que elas querem fugir de situações ruins, temem que, ao fazê-lo, se coloquem em sério risco.
"Para as poucas que conseguiram, há muitas que fracassaram; ser mandada de volta depois de algo assim coloca a mulher em uma situação realmente perigosa", diz Coogle, da Human Rights Watch.
Falando de um hotel em Bancoc, Alqunun já estava pensando na vida nova: quer fazer faculdade de Arquitetura e melhorar o inglês. Ela não espera que seja fácil a transição para a vida em um país em que nunca esteve, mas não se arrepende.
"Não há outra saída a não ser fugir. Não tem outro jeito", conclui.
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