Permitido nos países onde vigora a lei muçulmana da sharia, mas também na Turquia, o casamento infantil divide os alemães e é desde o ano passado motivo de processos nos tribunais. Entre os mais de um milhão de refugiados que chegaram ao país em 2015, 1.500 eram crianças casadas, sendo que 361 tinham de 9 a 14 anos.
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Reagindo aos protestos de organizações de defesa dos interesses das crianças e adolescentes, o Ministério da Justiça alemão criou na semana passada um grupo de trabalho que deverá apresentar conclusões até dezembro. Para Myria Boehmecke, da ONG Terre des Femmes, há uma grande possibilidade de o governo suspender o reconhecimento desses casamentos. Embora proibidos na Alemanha, as autoridades têm enfrentado um dilema pela falta de clareza da situação. Alguns juízes alegam que se o casamento foi realizado num país em que a lei o permite, como na Síria ou no Afeganistão, a Justiça deve reconhecê-los.
“Esta interpretação prejudica o interesse dos principais envolvidos, as noivas crianças, que perdem cedo a infância e a adolescência, além da chance de se desenvolverem pessoalmente e profissionalmente”, diz Boehmecke.
“Os noivos são homens muito mais velhos que oferecem aos pais dinheiro para se casarem com as meninas”.
Enquanto os juizados de menores lutam para defender as crianças, os maridos conseguem frequentemente impor os seus interesses junto aos tribunais.
Myria Boehmecke diz que um exemplo de como matrimônios são realizados contra a vontade das noivas está na Síria. Antes da guerra civil, 13% das noivas no país eram menores de idade. No primeiro trimestre de 2014 já eram 31,7%, de acordo com o Unicef. Agora, esse número teria subido para 51%, segundo a Terre des Femmes. A maioria dos casamentos é à força, mas com a permissão dos pais das noivas, que entregam suas filhas a homens bem mais velhos na esperança de que isso signifique maior segurança econômica.
“Outro motivo é o medo de que sejam estupradas no caos da guerra, perdendo a virgindade e a chance de conseguir um casamento”, lembra a ativista.
Mas, quando esses casais chegam à Europa, onde as leis e tradições são outras, a união é questionada.
Desde dezembro, quando uma refugiada síria de 14 anos chegou à Alemanha já casada com um primo de 21 anos, a questão virou um caso para os tribunais. Depois que o juizado separou à força o casal, assumindo a tutela da adolescente, o marido conseguiu impor o reconhecimento do casamento junto a um tribunal estadual.
Mas a situação não foi resolvida. Em busca da transparência jurídica sobre como encarar os milhares de casais onde pelo menos um dos dois cônjuges tem menos de 16 anos, o processo foi levado ao Tribunal Federal de Justiça, que deverá julgar se vale para o casal a lei síria, onde o casamento foi realizado, ou a alemã, onde os dois vivem hoje. Segundo a sharia, o casamento é permitido para meninas a partir de 9 anos e a meninos acima de 12.
“No Ocidente, um homem pode casar uma vez e ter dez amantes sem que ninguém reclame”.
Na Turquia, onde 25% das mulheres se casam antes dos 16 anos, causou protesto a decisão do Tribunal Constitucional de reduzir para 12 anos a idade para casamento e sexo consensual. Os juízes turcos partem do pressuposto de que menores de 12 a 15 anos já teriam maturidade para compreender o significado das relações sexuais.
Segundo a advogada turca Nuriye Kadavi, mesmo antes da sentença o casamento infantil era comum no país. Menores são, em geral, apenas as noivas. “Elas deixam a escola para começar a ter filhos”, diz.
Até agora, os imigrantes ou descendentes turcos que importaram uma noiva adolescente tiveram o pedido de visto para a jovem recusado, mas muitas vezes a união é feita por um imã, sem que autoridades alemãs tomem conhecimento.
Para Elija Kochembar, da Secretaria de Juventude de Berlim, os casamentos infantis são o maior desafio para as autoridades responsáveis pelos menores refugiados, porque estas ficam divididas entre a proteção do casamento e a proteção da infância, igualmente garantidas por lei.
Há entre os mais de cem casos registrados em Berlim, só no ano passado, alguns de crianças e adolescentes que a partir dos 10 anos já chegaram grávidas. Um estudo do Unicef ressalta o casamento infantil como um dos maiores problemas das adolescentes. Cerca de 15 milhões de meninas no mundo perderam a infância porque foram forçadas ao matrimônio. Além disso, podem ter complicações de saúde devido à gravidez precoce.
Segundo a representante da Terre des Femmes, há um verdadeiro comércio de noivas nos campos de refugiados no Líbano, Jordânia ou Turquia. “Os noivos são homens muito mais velhos que oferecem aos pais dinheiro para se casarem com as meninas”.
O problema foi registrado em toda a Europa. De acordo com a ONG holandesa “Children on the move”, em diversos dos 33 países onde está presente há casamentos infantis forçados. “Muitas crianças refugiadas desaparecem porque foram oferecidas pelos pais”, diz um estudo da ONG.
“O casamento infantil é crime e deve ser combatido radicalmente”, diz a encarregada da Terres des Hommes, que acaba de elaborar uma petição com mil assinaturas, enviada ao Ministério da Justiça para exigir tolerância zero para o casamento infantil e defendendo que ele seja visto como um crime e punido como pedofilia.
Índice de poligamia cresce na Europa após onda migratória
Com os refugiados que chegaram ao país, a Alemanha enfrenta o desafio de garantir o direito de preservar a identidade cultural dos imigrantes mas, ao mesmo tempo, integrá-los à sociedade. Além dos casamentos infantis, outro tema polêmico é a poligamia. Embora proibida pela lei alemã, é aceita em muitos casos com base no reconhecimento das leis dos países de origem.
Depois da repercussão das notícias de refugiados sírios vivendo com várias mulheres às custas do Estado, o ministro da Justiça, Heiko Maas, resolveu esclarecer. “Ninguém que vem para a Alemanha deve pôr a sua identidade cultural ou religião acima das nossas leis”.
“Como a Justiça [alemã] decidiria qual das duas [esposas] teria mais direito?”
Andreas KolbAdvogado de refugiados com mais de uma esposa
Uma família síria em Weissenfels, no estado de Saxônia Anhalt, mostra o contrário. Sultan Almutalab vive desde o ano passado com a primeira mulher, com quem teve cinco filhos, e com a segunda, bem mais jovem, com quem teve a caçula, de 7 anos. Ao ser indagado se não receava ser punido pela bigamia, Almutalab respondeu com uma risada. “No Ocidente, um homem pode casar uma vez e ter dez amantes sem que ninguém reclame”.
O sírio recebe a ajuda social destinada à numerosa família, mais de EUR 1 mil. Segundo o advogado Andreas Kolb, Almutalab não precisa ter receios. “A lei alemã proíbe a poligamia, mas é obrigada a aceitar famílias que se casaram em um país que permite aos homens ter “haréns”, como a Síria”.
Na sua opinião, se governo resolvesse organizar essa família dentro do modelo monogâmico teria que separar Sultan de uma das esposas. “Como a Justiça decidiria qual das duas teria mais direito?”
Segundo a lei síria, um homem pode ter até quatro esposas, desde que tenha recursos para isso. O assistente social Abed Chaban afirma que 30% dos árabes no bairro berlinense de Neukölln têm no mínimo duas esposas. “O método comum é um primeiro casamento no civil e, a partir do segundo, a cerimônia é feita apenas na mesquita”.
O problema afeta não apenas a Alemanha. Segundo o jornal católico “Katholisches”, a poligamia está se infiltrando em toda a Europa: 60 mil casos na Alemanha, 100 mil na França, 15 mil na Itália. Ocorre em mundos paralelos, no mesmo espaço urbano, mas isolados do resto da sociedade do ponto de vista sociológico.
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