Fidel Castro entra para a História como o homem que derrotou o império norte-americano. E foi um ditador que conseguiu se esquivar da imagem que tipicamente se tem de um ditador – vilão, carrasco, sanguinário, louco, excêntrico.
Talvez Fidel fosse isso tudo e pior para os críticos e vítimas de seu regime, mas os pesquisadores consultados pela reportagem – sejam eles mais ou menos favoráveis à ditadura castrista – falam sobre o “mito Fidel”, nas aspas do professor Ricardo Antonio Souza Mendes, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Fidel tem uma legitimidade histórica que está na origem da revolução – ele criou essa imagem na luta. Se não tivesse legitimidade, teria caído por volta de 1995”, diz Dimas Floriani, professor da Casa Latino-americana.
Uma série de proezas – outros chamariam de coincidências – acabou criando a imagem de um “líder invencível”, explica o professor Ricardo Mendes. Fidel superou a violenta repressão contra os participantes do assalto à Moncada. Ele sobreviveu ao desembarque de Gramna, onde 12 de um grupo de 82 pessoas saíram com vida. E resistiu também à grande ofensiva do ditador Fulgêncio Batista.
“O confronto realizado a partir de Sierra Maestra reforçou a simbologia da luta hercúlea, heroica, contra uma ditadura que aparentemente era muito mais forte”, explica Mendes. “O fato de ter liderado a vitória de pouco mais de 300 lutadores contra uma força de 10 mil soldados foi outro aspecto da construção do mito, mais uma vez com forte conotação religiosa: a luta de David contra Golias.”
Para Floriani, o maior legado de Fidel é a disposição de criar uma alternativa ao sistema hegemônico, no caso, o capitalista. “Não é um elogio, mas, para a América Latina, é um exemplo que colocou as questões sociais no centro das atenções. É uma ilusão desejar que o capitalismo periférico seja como o central, que levou 200, 300 anos para se tornar mais equilibrado”, explica o professor.
Inimaginável
“Para a esquerda, Fidel é um líder revolucionário que conseguiu derrotar os EUA com a guerrilha – algo inimaginável até então – e inspirar outros, como o Vietnã. Ele foi alguém que conseguiu vencer o inimigo imperialista”, diz o especialista em relações internacionais Marcos Alan Ferreira. “Para os críticos, foi um ditador, que perseguiu empresas privadas e criou um êxodo de cubanos. Porém, diferente do modelo chinês ou do alemão, Fidel foge da imagem de carrasco.”
Autor do livro Formação do Império Americano (Civilização Brasileira), Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira não tem meias palavras: “Gostem dele ou não, Fidel Castro marcou uma época na América Latina. Só o fato de ter ficado no poder por quase 50 anos, apesar de tudo o que os Estados Unidos fizeram, inclusive para assassiná-lo, constitui uma enorme vitória. E por isso os Estados Unidos não o perdoam. Cuba, como um pequeno país, rebelou-se contra o império e, digam o que disserem, venceu, porque a maior potência militar do planeta não conseguiu derrubá-lo”.
Um dos responsáveis pela revista eletrônica Fevereiro, Ruy Fausto é radicado em Paris e se apresenta como um crítico do filósofo Karl Marx. Professor emérito da Universidade de São Paulo, ele diz, em entrevista por e-mail, que Fidel representa “algo como um aborto do processo de libertação”.
“Os irmãos Castro expropriaram uma revolução democrática. O quarto homem cubano da revolução, Huber Matos, apodreceu nas prisões castristas durante 20 anos. Só não o mataram por medo da opinião pública internacional. Camilo Cienfuegos, o terceiro cubano, morreu em circunstâncias muito estranhas. A atitude de Camilo em relação ao caso Matos foi hesitante. Castro o enviou para prender Matos. Houve uma série de mortes estranhas de gente ligada de algum modo à morte de Camilo – controladores do aeroporto e várias outras testemunhas. Segundo alguns autores, o avião foi abatido por um caça cubano e eles dão inclusive o nome do piloto. Elocubração?”, questiona Fausto. “Não digo que isso é certo, é mais ou menos certo que o poder castrista não contou tudo o que sabe sobre o caso. Devo dizer que os dados são impressionantes, mas seria preciso verificar.”
“A meu ver, é essencial manter uma posição de esquerda na crítica a Castro”, continua Fausto. “Posição de esquerda não quer dizer atenuar as críticas ao regime, ou falar das suas ‘conquistas’. ‘Conquistas’, a rigor, não existem. A maneira de diferenciar uma crítica de esquerda é mais ou menos a seguinte (desenvolvo esse ponto em outros textos). Mostrar que, se a democracia é sempre superior ao totalitarismo, o capitalismo, principalmente selvagem, quando acoplado com a democracia, a mina de uma forma ou de outra. Isso não quer dizer que ele liquide sem mais a democracia. Mas limita as suas exigências e no tempo cria condições para o fim da democracia.”
E arremata: “A nossa bandeira poderia ser dupla: ‘Americanos fora de Guantânamo!’ e ‘Castrismo fora do poder em Cuba!’. Muito complicado? Pois a história é complicada. Quem não quiser complicação acaba sendo cúmplice do que há de mais sinistro. Cúmplice de Stálin, Mao ou Castro”.