A navegação GPS não se aplica a muitas ruas no Catar. É só sair dirigindo pela cidade e a linha verde na tela começa a se transformar em formas incompreensíveis. A voz do robô começa a se contradizer.
Até certo ponto, o Catar é assim há mais de duas décadas, desde que o consumo de gás transformou o destino da nação: o país fica mais denso, mais alto e cada vez mais irreconhecível (para seres humanos e dispositivos) de um dia para o outro, mas, nos últimos anos, esse processo atingiu uma velocidade vertiginosa por causa das preparações para sediar a próxima Copa do Mundo de futebol.
Agora que o torneio na Rússia terminou, chegou a vez do Catar que, nos próximos quatro anos, vai comandar a atenção da comunidade mundial do futebol – e em 2022, o país de 2,6 milhões de habitantes abrirá suas portas para cerca de 1,5 milhão de visitantes de todas as partes do mundo.
Por isso, muitas perguntas começaram a surgir: até onde vai seu poder de transformação? Até que ponto a sociedade do Catar vai se desdobrar para acomodar os hóspedes que vêm com certas expectativas em relação a como uma Copa do Mundo deve ser? Com que profundidade o país vai abordar os problemas, particularmente aqueles ligados aos direitos humanos, que minam o projeto com críticas externas e dúvida desde o momento em que ganhou os direitos de sede, há oito anos?
Algumas das questões foram abordadas, outras não. Há também as que podem nunca vir a ser.
Muitos desafios
Nesse meio tempo, o Catar continua a crescer: arranha-céus, shoppings e estádios vão sendo construídos, ruas e novas linhas de transporte público surgem. Centenas de milhares de trabalhadores vindos do exterior se instalaram aqui. Árvores e grama crescem em pleno no deserto. "Dois anos atrás não tinha nada aqui; eu tinha que ir trabalhar de 4X4", disse Yasser Al-Mulla, apontando para um vasto gramado e árvores durante uma visita em maio.
Agora, Mulla vai com seu Jaguar F-Type para o trabalho, onde seu papel nas preparações para a Copa envolve ver a grama crescer. Ele é responsável pelo berçário que produz o gramado e as árvores que vão decorar estádios, locais de treinamento e praças públicas daqui quatro anos. Sua equipe cultiva campos da grama no deserto, prepara-o em folhas, enrola-os como tapete, e os envia para embelezar áreas outrora estéreis. O grupo também reuniu 10 mil árvores em todo o país e no exterior, que são mantidas e cuidadas em barracas, à sombra.
Leia também:  Crise no Catar: país terá de cumprir seis princípios de combate ao terrorismo 
Plantas não crescem facilmente em Doha, onde a precipitação é pouco superior a 75 mm por ano, mas a Copa precisa de vegetação.
Do outro lado da cidade, um segundo grupo faz testes com 12 espécies para conseguir o gramado perfeito para os campos da competição. Eles misturam variáveis – luz, solo, água e assim por diante – e chutam bolas de futebol em áreas de prova, entre outras avaliações, para analisar os resultados.
Os organizadores prometeram à FIFA que os estádios terão cerca de 22º C durante os jogos, embora possam manter a temperatura em torno dos 17º C. A FIFA transferiu o torneio para o início de novembro, quando a temperatura ao ar livre aqui ainda pode chegar a 29º C ou mais, para escapar do calor sufocante na época tradicional dos jogos, no meio do ano.
Situação dos trabalhadores
Quase dois milhões de trabalhadores estrangeiros estão no país, e sua vida tem sido objeto de intenso escrutínio desde que o Catar ganhou os direitos de sede em 2010. Eles estão em toda parte, inclusive no estádio Al Wakrah, onde 600 veículos circulavam em uma tarde recente e 4 mil funcionários migrantes se revezavam em turnos de trabalho sob o sol escaldante.
Histórias perturbadoras, às vezes chocantes, da situação trabalhista do país continuam a surgir: em uma auditoria anual divulgada em fevereiro, por exemplo, descobriu-se que pessoas trabalhando mais de 72 horas por semana em determinadas companhias e funcionários de uma empresa terceirizada que chegaram a trabalhar mais de 124 dias consecutivos.
No entanto, alguns dos críticos mais ferrenhos do Catar mudaram de tom, mesmo que só ligeiramente. Em novembro, por exemplo, a Organização Internacional do Trabalho, agência das Nações Unidas, desistiu de uma queixa formal que havia feito em 2014 sobre o fracasso do governo em proteger os direitos dos trabalhadores migrantes. O Catar, ao mesmo tempo, concordou em introduzir um acordo de cooperação técnica com ela para reformar seu cenário trabalhista.
Em abril, a instituição abriu um escritório parcamente mobiliado no bairro de West Bay, em Doha, inicialmente com apenas quatro funcionários. A equipe vai chegar a 15 em setembro.
Essa atitude, para alguns, inspirou um otimismo cauteloso. A agência desenvolveu um projeto de três anos para abordar algumas questões centrais: estabelecer um salário mínimo permanente, eliminar o sistema de vistos que dificulta a saída do país para os trabalhadores que não tenham autorização do empregador, e criar um mercado de trabalho livre, onde os funcionários não são vinculados a uma empresa. A parceria também inclui treinamento para juízes, promotores trabalhistas, policiais e inspetores.
"Estamos no início de nossa jornada", disse Houtan Homayounpour, que dirige o escritório, acrescentando que a presença de sua equipe por si só já era motivo de otimismo. "É mais do que se pode dizer sobre muitos países", alfineta.
Desafios
O Comitê Supremo de Entrega e Legado, responsável por supervisionar o projeto de infraestrutura de US$ 200 bilhões da Copa do Mundo, opera em uma torre prateada cujo formato lembra vagamente um tornado. Em uma entrevista em seu escritório, Nasser Al-Khater, o secretário-geral adjunto do comitê, disse que o grupo estava "muito satisfeito" com o andamento dos trabalhos e confiante de que tudo estaria pronto no prazo previsto, dois anos antes do torneio.
Ele reconheceu que os graves problemas trabalhistas permanecem, mas acrescentou que o Catar estava a "anos-luz" da situação de cinco anos atrás e "muito à frente dos seus vizinhos".
Além disso, afirmou que um boicote aéreo e marítimo, iniciado no ano passado pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos por causa de diferenças políticas, fez o comitê buscar outras cadeias de suprimentos de materiais de construção, ou seja, na Índia, na China e na Turquia. Mas ele e outras autoridades da Copa viram a experiência como algo positivo, uma vez que abriu os olhos da comissão para o que chamou de "um novo mundo de possibilidades".
Entre os 2,6 milhões de habitantes do Catar, cerca de 300 mil são cidadãos catarianos. Adicionar um milhão de estrangeiros à mistura, na forma de torcedores, é algo de difícil compreensão para algumas pessoas que passaram a vida toda aqui.
"Somos uma minoria em nosso país", disse Khater sobre os catarianos, "por isso temos experiência em lidar com a situação. E sabemos que receberemos pessoas que não estão acostumadas com a nossa cultura, que não ficarão aqui tempo suficiente para entender as normas do que é ou não apropriado. Não podemos deixar de lhes mostrar nossa cultura, na medida do possível. E também é nosso dever e responsabilidade garantir que todos aqui sejam super-hospitaleiros".
Moscou, cidade com mais de 900 anos de idade, organizou a final da Copa do Mundo em 15 de julho. Lusail, a cidade que vai sediar a final daqui quatro anos, ainda não existe de fato. A 30 minutos de carro do centro de Doha, ela continua sendo um trecho de torres basicamente vazias.
A oferta agora supera em muito a demanda, mas o Catar precisava crescer para a Copa do Mundo. A FIFA exige que os anfitriões do torneio ofereçam 125 mil quartos de hotel. No momento da sua candidatura, o país tinha 30 mil. Além de construir hotéis, também vai usar navios de cruzeiro e campings no deserto para complementar o número necessário de leitos.
Os especialistas dizem que a Copa é um componente central de um plano não só para desenvolver fisicamente o país, mas também aumentar o reconhecimento de seu nome no cenário global. Depois de oito anos de espera, os holofotes da competição estarão sobre o Catar, com todas as consequências que isso implica.
The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.