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Nos primeiros sete meses de 2020, mais de meio milhão de tibetanos que vivem em zonas rurais foram treinados em um programa centralizado de larga escala do governo chinês que visa capacitar a mão-de-obra rural para trabalhar na indústria chinesa, seja em outros locais do Tibete ou em outras províncias da China. O número representa cerca de 15% da população da região.
O enunciado soa positivo, não fosse as táticas draconianas que Pequim usa para alcançar seus objetivos. Um relatório produzido por Adrian Zenz, pesquisador independente do Tibete e Xinjiang e vinculado à Jamestown Foundation, afirma que pastores e fazendeiros são "submetidos a um treinamento vocacional centralizado de 'estilo militar', que visa reformar o 'pensamento retrógrado' e inclui treinamento em 'disciplina de trabalho', leis e de Língua chinesa".
Em um estudo sobre essa nova política chinesa introduzida no Tibete, analisando relatórios de redução da pobreza das autoridades locais, Zenz conta que os documentos afirmam que a "gestão rigorosa do estilo militar" do processo de treinamento vocacional "fortalece a fraca disciplina de trabalho [dos tibetanos]" e reforma seu "pensamento retrógrado".
Os relatórios também afirmam que o estado deve "parar de criar pessoas preguiçosas" e "diluir a influência negativa da religião". Neste processo, os tibetanos são "encorajados" a entregar suas terras e rebanhos a cooperativas estatais - em troca de ações - e se tornam trabalhadores assalariados. Os treinamentos são feitos de acordo com as necessidade das indústrias.
A agência de notícias Reuters analisou mais de cem reportagens da imprensa estatal e documentos de agências governamentais que descrevem o programa e chegou à mesma conclusão. Segundo a Reuters, Pequim estabeleceu cotas para a transferência em massa de trabalhadores rurais do Tibete para outros locais, o que "marca uma rápida expansão de uma iniciativa que visa fornecer trabalhadores leais para a indústria chinesa". Muitos destes tibetanos acabam em empregos com baixos salários, como na indústria de manufatura têxtil.
As revelações ocorrem em um momento de renovada pressão do regime de Xi Jinping contra o separatismo no Tibete. Em agosto, o presidente disse a autoridades do partido que a China deve construir uma "fortaleza inexpugnável" para manter a estabilidade no Tibete, proteger a unidade nacional e educar as massas na luta contra o "separatismo".
"Mais educação e orientação devem ser fornecidas ao público para mobilizar sua participação no combate às atividades separatistas, forjando assim um escudo de ferro para salvaguardar a estabilidade", observou Xi, destacando que o patriotismo deve ser incorporado em todo o processo de educação em todas as escolas, segundo a agência de notícias estatal Xinhua. Ele também disse que o budismo tibetano deve ser orientado na adaptação à sociedade socialista e deve ser desenvolvido no contexto chinês.
Em anos anteriores, assim como a província de Xinjiang, de maioria uigur, o Tibete foi alvo de políticas de repressão para "manter a estabilidade" na região autônoma. Sob a liderança de Chen Quanguo, secretário do Partido Comunista para o Tibete (principal cargo na região) entre 2011 e 2016, as autoridades locais aumentaram a presença policial nas cidades, criando as "delegacias de polícia de conveniência", que formam uma grande rede de vigilância comunitária chamada de "gestão social em grade", segundo Zenz. (Chen posteriormente assumiu como secretário do Partido Comunista em Xinjiang, onde está em curso uma campanha brutal para apagar a identidade cultural da etnia muçulmana uigur, disfarçada de medidas antiterrorismo e educacionais.)
Centros de treinamento vocacional de estilo militar foram introduzidos em 2012 na cidade de Chamdo. Mas o programa só foi expandido para todo o Tibete em março de 2019, com o objetivo de "aumentar o senso de disciplina dos trabalhadores para cumprir as leis e regulamentos nacionais e as regras e regulamentos da unidade de trabalho". Dos mais de 500 mil treinamentos realizados em 2020, nem todos ocorreram seguindo o "estilo militar", mas desde 2016 o número de unidades que abrigam esse tipo de treinamento aumentou acentuadamente.
De acordo com as autoridades chinesas, esse programa faz parte de uma política mais abrangente do governo de Xi Jinping para erradicar a pobreza absoluta em áreas rurais por meio do aumento da renda. "Isso significa que os nômades e fazendeiros tibetanos devem mudar seus meios de subsistência para que ganhem uma renda em dinheiro mensurável e, portanto, possam ser declarados 'livres de pobreza'", escreveu Zenz. A China se comprometeu a erradicar a pobreza rural no país até o final de 2020.
Contudo, Zenz afirma que "no contexto da política de minorias étnicas cada vez mais assimilatória de Pequim, é provável que essas políticas promovam uma perda a longo prazo do patrimônio linguístico, cultural e espiritual" dos tibetanos.
Como são feitos os recrutamentos e as transferências
De acordo com a Reuters, os recrutamentos são feitos por equipes de trabalho enviadas às aldeias. Elas coletam dados de trabalhadores rurais e realizam atividades educacionais para construir uma relação de lealdade, para só depois recrutar os trabalhadores. Há também um forte esquema de vigilância comunitária.
Políticas estabelecidas neste ano determinam que essas equipes precisam cumprir cotas estabelecidas para a transferência de trabalhadores rurais "excedentes" treinados para postos de trabalho na indústria. Em 2020 essas cotas são de 5 mil transferências de trabalhadores para outras províncias e 55 mil transferências internas no Tibete. Nos primeiros sete meses do ano 90% desta meta já tinha sido alcançada.
De acordo com estudo de Zenz, esses "corretores de mão-de-obra" recebem entre US$ 44 e US$ 74 dólares por transferência. A empresas que participam do programa também recebem auxílio do governo. Geralmente as transferências são feitas em grupos e os trabalhadores ficam em acomodações centralizadas, separados dos outros empregados da empresa para a qual foram contratados, e sob supervisão. Filhos, esposas, maridos, idosos da família ficam para trás com a promessa de que receberão "cuidado amoroso" do Estado.
Semelhanças e diferenças com Xinjiang
Embora pareça um programa voluntário, Zenz afirma que há evidências que indicam a presença sistêmica de medidas coercitivas, assim como programas em Xinjiang.
"Os documentos do governo da Região Autônoma do Tibete deixam claro que o alívio da pobreza é um 'campo de batalha', com esse trabalho a ser organizado sob uma estrutura de 'comando' semelhante à militar", explicou o pesquisador.
O estudo de Zenz revela que documentos do governo afirmam que a "gestão rigorosa do estilo militar" do processo de treinamento vocacional faz com que as "massas cumpram a disciplina", "fortaleçam continuamente sua consciência patriótica" e reformem seu "pensamento retrógrado". Aqueles que não conseguirem cumprir as metas serão punidos.
Para driblar a resistência local, uma campanha de mudança de pensamento é adotada usando todo o aparato de vigilância do estado. As equipes do governo começam a fazer parte do dia a dia dos moradores, entram em suas casas, organizam eventos buscando transformar o pensamento de "querem que eu saia da pobreza" para "eu quero sair da pobreza" - outra similaridade com Xinjiang.
Mas Zenz nota que no Tibete ainda não há nenhuma evidência de que o trabalho seja forçado ou que os trabalhadores sejam mantidos em ambientes fechados e monitorados por seguranças durante o serviço, como ocorre em Xinjiang. Também não há evidências de que os tibetanos sejam mantidos em campos de internação, como os uigures.
Contudo, segundo informou a Reuters, defensores, grupos de direitos humanos e pesquisadores dizem que é improvável que os trabalhadores sejam capazes de recusar colocações de trabalho, embora reconheçam que algumas possam ser voluntárias.
Em declaração à agência de notícias, o Ministério das Relações Exteriores da China negou veementemente a existência de trabalho forçado e disse que a China é um país com estado de direito e que os trabalhadores são voluntários e devidamente remunerados.