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Desde novembro de 2021 a Lituânia tem sido o inimigo número um da China. Como foi que um país com dois milhões de habitantes conseguiu provocar a ira das autoridades chinesas ao ponto de darem um fim nas relações diplomáticas e comerciais? O governo lituano ousou permitir que Taiwan abrisse um escritório representativo em Vilnius, a capital, usando o nome Taiwan em vez de Taipei, o termo que a China prefere. Taipei é a cidade cuja existência o regime chinês não pode negar; Taiwan é uma república dissidente que não deveria existir. Os lituanos, que são anticomunistas empedernidos desde o fim da longa ocupação da União Soviética, fizeram isso de propósito. Talvez tenha subestimado a reação agressiva de Pequim – mas, de qualquer forma, o Ocidente às vezes tem dificuldade de entender o que parece ser paranoia dos chineses.
Tentando compreender a China, Henry Kissinger observou – e colocou em prática o conselho – que deve haver um esforço de se colocar no lugar dela. As autoridades chinesas, preocupadas com um desejo de reconhecimento internacional, percebem o menor deslize em protocolo diplomático como uma ressurreição do imperialismo. A China já foi o maior poder do mundo, mas chegou atrasada no reconhecimento da ascensão do Ocidente, além da importância da ciência e da indústria no estímulo a essa ascensão. Essa cegueira levou à colonização efetiva da China no século XIX – por europeus, americanos e, numa humilhação suprema, por japoneses. Ao longo do século XIX, os imperadores chineses tiveram de assinar tratados de rendição aos montes e ceder território antes do colapso total do Império em 1911.
Depois disso, houve meio século de conflito violento entre senhores da guerra até a vitória do exército comunista sob liderança de Mao Tsé-tung e apoio dos soviéticos, o que pôs o Partido Comunista no poder. O real motivo de Mao e seus sucessores terem encontrado apoio entre os vários povos da China não foi o marxismo das novas autoridades; foi porque deram um fim às guerras civis. Substituíram as guerras pela erradicação da classe média, por limites totalitários sobre a vida privada, pela destruição de costumes antigos e a trituração das religiões – mas, para os chineses, qualquer coisa era melhor que o horror do conflito civil infindável. Amiúde, no Ocidente, acreditamos que a legitimidade do Partido Comunista Chinês se assenta no crescimento econômico, mas ele não decolou até 1979. Mais fundamental que o crescimento é a ordem. O regime de Pequim é, de certa forma, comparável ao de Franco na Espanha, mais fascista que comunista, embora qualquer classificação desse tipo deva ser contextualizada historicamente.
A China sob o PCCh quer manter a ordem, portanto, mas também quer apagar a mancha do período colonial. A historiografia oficial culpa os colonizadores por todas as mazelas que derrubaram o Império. Dessa forma, os historiadores chineses exageram em muito a importância das Guerras do Ópio (entre 1839 e 1860), que eram meros conflitos locais intensificados por rivalidades comerciais entre negócios chineses e britânicos. Na realidade, o Império foi acima de tudo uma vítima da própria incapacidade de se modernizar – uma missão que o Japão cumpriu durante o mesmo período.
Se considerarmos essa mentalidade hoje, ficaremos menos surpresos que uma China ascendente esteja tão indignada com a imposição de instituições internacionais, leis internacionais e direitos humanos sobre ela, quando ela não participou da elaboração de nada disso. Se fôssemos chineses, não aceitaríamos facilmente a presença de uma frota americana patrulhando o nosso litoral. Como perguntou um embaixador chinês na China: como os americanos reagiriam se vissem, todo dia, a frota de guerra chinesa perto da costa da Califórnia?
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Os chineses, inclusive nos círculos intelectuais, ficam eriçados quando os ocidentais lhes escrutinizam e julgam. Quando eu viajei muito pela China em meados dos anos 2000 para o meu livro O Império das Mentiras [tradução livre], os meus interlocutores me perguntavam por que eu estava escrevendo sobre o país deles e não sobre o meu próprio, a França. É verdade que os ocidentais publicaram inúmeros livros sobre a China; em comparação há poucos escritos sobre o Ocidente por autores chineses.
Essa indiferença chinesa ao mundo externo era característica do Império, como ilustra a história do almirante Zheng He. Em 1405, Yongle, imperador da Dinastia Ming, deu a Zheng He, um eunuco muçulmano, a missão de explorar o mundo além-mar. Era curiosidade ou gana de conquista? O projeto era sem precedentes para aquele império rural, que nunca antes possuíra sequer uma frota marítima. O almirante Zheng He encabeçaria um gigantesco esquadrão que tinha, em seu apogeu, quase 30 mil guerreiros em 300 naves, e realizou sete expedições entre 1405 e 1433. Essas jornadas levaram Zheng He da atual Indonésia ao Chifre da África.
Zheng concluiu que nenhuma das civilizações que ele encontrou era comparável em poder à China ou digna de interesse. Em momento nenhum ele vislumbrou tomar posse de terras longínquas. Depois da morte do imperador Yongle, em 1424, seu filho, o imperador Hongxi, ordenou o fim das explorações marítimas (embora Zheng He tenha conduzido uma última viagem sob o neto do imperador Yongle). A construção de novos barcos foi banida, e a frota foi destruída.
A memória dessas expedições permaneceu em grande parte apagada até 2006, quando uma grande exibição em Pequim a faz renascer. A meta contemporânea era ideológica, não histórica: mostrar que, diferentemente do Ocidente, a China sempre respeitou outras civilizações, nunca impôs as suas religiões ou normas, e nunca colonizou terras distantes. A intenção era acalmar os africanos e asiáticos a respeito da presença de bases marítimas chinesas que o novo governo assertivo buscava estabelecer ao redor do mundo.
“Não há nada para aprender com os outros”, haviam concluído os imperadores Ming. Essa postura altiva reemergiu quando as missões religiosas europeias com início no século VII e depois missões diplomáticas e comerciais fracassaram em forjar relações com o imperador. Ao logo de três séculos, todos os emissários – jesuítas, embaixadores e comerciantes interessados – foram dispensados pela mesma razão: a China nada tinha a aprender com o estrangeiro.
Essa indiferença não desapareceu totalmente. Só com o regime de Deng Xiaoping, depois da morte de Mao em 1976, a China começou a observar de perto o Ocidente, com cuidado para importar somente técnicas, não ideias culturais e políticas. Foi aí que subiu o número de estudantes chineses em universidades americanas, na maior parte em áreas técnicas. O presidente Xi Jinping foi explicitamente enfático a respeito, repetindo continuamente a sua hostilidade às ideias liberais; por outro lado, a pirataria sobre as tecnologias ocidentais é incentivada.
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O cientista político de Harvard Joseph Nye popularizou o termo “soft power” [algo como “poder brando”], que denota diversos valores culturais não-quantificáveis de significância universal. O soft power das nações depende da sua capacidade de ganhar a admiração e até a lealdade de pessoas de países estrangeiros. Nessa métrica, os Estados Unidos permanecem sendo a nação de maior soft power, graças à sua vitalidade cultural incomparável que é tanto popular quanto de elite – da Disney à Metropolitan Opera. A França e a Itália também possuem um soft power considerável, como se pode ver por sua capacidade de atrair turistas e pelo apelo internacional de sua moda. O soft power também pode ser ideológico: o apelo da União Soviética não vinha da literatura russa, mas do seu modelo de sociedade que a propaganda apresentava como uma alternativa extraordinária ao capitalismo e ao colonialismo. Era tudo uma enganação, é claro, mas ludibriou a muitos e por muito tempo.
A aspiração das autoridades chinesas à legitimidade internacional exige um soft power tão atraente quanto o dos americanos e europeus. Mao percebeu isso ao exportar sua ideologia revolucionária que trazia o seu nome, inspirando movimentos que balançaram a Índia, Indonésia, Peru, Itália e França durante nos anos 1960. Os intelectuais ocidentais juntaram-se em bando em Pequim na busca da iluminação, da mesma forma que uma geração anterior foi a Moscou curvar-se diante da ditadura do proletariado. O maoísmo foi erradicado depois da morte de Mao. Desde então, a China não exportou quase nada de imaterial, sejam ideias, filmes ou livros (Só a ficção científica chinesa encontrou um público internacional nas obras traduzidas de Cixin Liu e alguns outros escritores).
O soft power da China caiu a quase zero porque o Partido Comunista destruiu a civilização chinesa de forma sistemática. Mao começou a destruição. Em um discurso proferido em 1949, na Praça da Paz Celestial, ele clamou por “um oceano de colunas de fumaça” na capital, que fora conhecida como a “cidade de mil pagodes”.
No começo dos anos 2000, ainda era possível encontrar os velhos pagodes aqui e ali, cercados por fábricas. Hoje, a cidade antiga foi aplainada. Só sobreviveram alguns vestígios como atrações turísticas, como a Cidade Proibida, e esses foram mal restaurados em meio a prédios comuns e rodovias urbanas de Pequim. Pequim não apenas está entre as cidades mais poluídas do mundo; também é uma das mais feias.
A pobreza da cultura chinesa contemporânea se repete na literatura. Quando Gao Xingjian, o maior escritor atual da China, ganhou o prêmio Nobel em 2000, o governo chinês, longe de celebrar o seu sucesso, fez saber que ele não representava a China – fingiu que ele não era realmente chinês, mas francês, pois estava morando em Paris quando foi laureado com o Nobel (Na verdade, Gao escreve em chinês e não fala nem uma palavra de francês). Então Pequim pressionou o comitê do Nobel a honrar um verdadeiro escritor chinês – isto é, um selecionado pelo Partido Comunista: Mo Yan. O júri do Nobel cedeu, laureando-o em 2012. Quando me encontrei com Mo Yan em Pequim naquele ano, notei que em seus livros ele denunciava a destruição do patrimônio chinês, mas nunca mencionara o massacre de estudantes na Praça da Paz Celestial, em 1989. Estávamos em uma cafeteria cheia e, olhando ao redor com nervosismo, ele respondeu: “É cedo demais para falar disso”.
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Em 2006 ainda era possível encontrar resquícios de religiosidade em uma nação que já foi profundamente religiosa. Na China, deve-se falar da religião no plural, da forma como ela sobrevive em Taiwan. Antes da tomada comunista, os chineses aderiam a formas de culto budistas, taoístas, muçulmanas, católicas e protestantes. O Partido Comunista, depois de tentar erradicar essas tradições espirituais pelo assassinato de líderes religiosos e outras medidas repressivas, decidiu tolerá-las contanto que aceitassem o controle do partido. Como declarou XI Jinping em 2017, no 19º Congresso Nacional do Partido Comunista: “Funcionários ou líderes religiosos na China devem ser chineses em sua orientação e devem guiar ativamente as religiões para que possam se adaptar à sociedade socialista”.
O resultado disso tem sido um tipo de prática religiosa de duas faces em templos, mesquitas, pagodes e igrejas, com uma forma oficialmente sancionada e um fervor ilegal persistente. O Partido Comunista teve sucesso em burocratizar as duas maiores religiões chinesas oficiais, o taoísmo e o budismo, cujo ensino oral depende da qualidade dos mestres que foram exterminados, exilados ou substituídos por funcionários patriotas. O islã não desfruta de tolerância maior, embora seja praticado por alguns chineses étnicos cujas famílias se converteram há séculos. O defeito dos uigures de Xinjiang oprimidos de forma horrenda é que são muçulmanos e de outra raça. Quanto ao cristianismo clandestino, pelo que vi em suas reuniões secretas, é um amálgama de crenças tomadas de empréstimo de várias fontes cristãs – refletindo mais um desejo de ocidentalização do que expressando uma fé coerente.
Enfatizo o desaparecimento das religiões, porque eram constitutivas da China antiga e porque o Partido Comunista tem mais medo delas do que dos dissidentes democratas. Liu Xiaobo, ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2010, que morreu sob vigilância em 2017 em um hospital chinês, conseguiu convencer a seus interlocutores ocidentais, inclusive eu, que a democracia era compatível com a civilização chinesa; mas poucos o conhecem fora do circuito universitário. A mesma coisa é verdadeira para Wei Jingsheng, considerado o líder do movimento democrático chinês. Ele foi libertado do cárcere chinês em 1997 depois da pressão do presidente Bill Clinton, mas, desde então, viveu no exílio nos Estados Unidos e sem um público cativo chinês. O protesto recente mais desestabilizante contra o Partido Comunista, em comparação, teve origem religiosa: em 1999, 10 mil membros da comunidade budista Falun Gong ocuparam em silêncio uma área perto do Comitê Central do partido em Pequim. A seita foi em seguida esmagada na China, mas autoridades partidárias ainda se perguntam como foi que conseguiu escapar da sua vigilância.
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Que tipo de soft power, então, é para ser exportado, e de que forma, dada a falta de apetite do resto do mundo? Claro, há a língua chinesa – o mandarim oficial – útil para os negócios; e também um modelo econômico que alguns acreditam ser mais eficaz que o capitalismo liberal do Ocidente.
A exportação do soft power chinês acontece em parte através dos assim chamados Institutos Confúcio, que o Partido Comunista buscou espalhar pelo mundo, especialmente em campi universitários. Já que os institutos não têm o fardo de seguir qualquer ética acadêmica e censuram verdades impalatáveis para o partido, as principais universidades americanas recusam-se a permiti-los em seus espaços. Mas algumas escolas carentes de fundos os aceitam.
O nome dos institutos pode ser uma surpresa para alguns. Afinal, em princípio Confúcio é detestado pelo Partido Comunista, já que o pensamento dele exalta um paraíso perdido – a antítese do progresso prometido pelo PPCh. É verdade que Confúcio aconselha a obediência aos governantes, mas ele também defende a revolução se o comportamento deles for imoral. Porém, a opinião do partido é que, fora das fronteiras da China, Confúcio é uma marca reconhecível.
De qualquer modo, o soft power da China, decadente desde o massacre da Praça da Paz Celestial, continuou a cair com a ascensão de Xi Jinping. A pouca liberdade criativa que emergiu na China comunista antes de Xi agora desapareceu. As regras relativamente previsíveis de sucessão estabelecidas por Deng Xiaoping – liderança eleita por um colegiado, cujo tempo máximo não passa de dez anos – foram substituídas por um novo culto à personalidade e um governo que, de algumas formas, é tão opressivo quanto o de Mao. É um regime pouco propício a conquistar pessoas na China ou fora dela.
Xi está apostando na vultosa construção de uma nova infraestrutura pela China em outros países para expandir sua influência no globo – as novas rotas da seda. Mas a iniciativa do Cinturão Econômico da Rota da Seda, como o projeto é conhecido, nem sempre avançou sem atrito, especialmente quando os países mais pobres na África ou na América Central descobriram que devem pagar os empréstimos chineses a taxas mais altas que as dos mercados internacionais e que os projetos específicos de construção são direcionados e muitas vezes executados por chineses expatriados que com frequência detestam o povo local.
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Quando Kissinger perguntou a respeito dos planos da China para a conquista de Taiwan, Deng respondeu basicamente “Não temos pressa”. Na época, a China tinha outras prioridades – acima de tudo a economia, já que o país ainda era muito pobre. Com Xi, Pequim parece ter mais pressa. Entre os oficiais, Taiwan é uma obsessão – muito mais, na minha experiência, que na população em geral.
Essa obsessão recorrente tem muitas facetas. Uma é histórica. Em 1949, os últimos soldados dos exércitos nacionalistas, com seu líder Chiang Kai-shek, refugiaram-se em Taiwan escapando de Mao, que não tinha uma marinha. Tomar Taiwan seria completar a vitória militar comunista. Na opinião do partido, nenhum território historicamente chinês deve escapar à autoridade de Pequim. Essa noção é importante para entender as reivindicações geográficas chinesas sobre territórios de fronteira conquistados por dinastias antigas: o Tibet, o leste do Turquistão (hoje Xinjiang), os desertos congelados do Himalaia, as ilhas perdidas do mar da China e alguns pedregulhos disputados com o Japão. Mas Taiwan, deve-se notar, não foi sempre chinesa, mas com frequência independente, povoada por aborígenes austronésios – e depois pelos colonos holandeses e japoneses.
Porém, para a doutrina do partido, qualquer coisa que já tenha sido por um só dia chinesa deve voltar a ser chinesa. Isso põe em questão uma grande parte da Sibéria ocupada hoje pela Rússia – embora as autoridades chinesas não ousem dizê-lo em voz alta. Quando cruzei o rio Amur, que faz fronteira com a Rússia, observei que os camponeses e comerciantes chineses nessa parte da Sibéria agiam como se ali fosse o seu lar – de fato, os chineses consideram a Sibéria oriental uma propriedade de direito da China, mas não têm pressa neste caso, também – enquanto os russos, em número escasso, fingiam que não estavam vendo. Ambos os lados se lembram do confronto militar letal de 1969 no rio Ussuri, quando os soviéticos expulsaram o exército chinês às custas de muitas baixas em ambos os lados.
Outra razão para Taiwan independente enfurecer Pequim: é uma democracia próspera, bem à porta da China, e é mais autenticamente chinesa que o continente. Na verdade, Taiwan é um conservatório da cultura chinesa. Quando fugiu do continente, Chiang Kai-shek levou consigo todos os tesouros da Cidade Imperial; o Museu do Palácio Nacional em Taipei tem grandes obras que os imperadores acumularam ao longo de mil anos. Imagine se os tesouros da coroa britânica fossem removidos pelos irlandeses e exibidos em Dublin! Além desses artefatos materiais, Taiwan é o lar das artes e tradições da China clássica em seu ápice: música, ópera, caligrafia, arte em laca e cerâmica – tudo o que desapareceu da China comunista. Da mesma forma, todas as religiões banidas do continente são praticadas livremente em Taiwan, especialmente o taoísmo, a religião chinesa por excelência. É em Taiwan (e, até pouco tempo, em Hong Kong) que os livros censurados em Pequim aparecem. Essas obras são contrabandeadas de Taiwan para o continente, vendidas na clandestinidade ou publicadas na internet, em alfabeto simplificado, já que só Taiwan preservou a caligrafia antiga da China clássica.
Em Taiwan, a língua taiwanesa importada da província de Fujian é falada por quem habita a ilha há muitas gerações, enquanto o mandarim, a língua oficial da China comunista, é falado por imigrantes mais recentes. Essa diferença linguística, que é uma forma cultural de democracia, obviamente desagrada a Pequim, já que lembra às pessoas que a China já foi uma federação de povos, culturais e línguas, como a Índia ainda é hoje.
Em qualquer invasão Pequim não teria como confiscar as riquezas de Taiwan – elas desapareceriam junto com a fuga dos empreendedores, da mesma forma que Hong Kong está sendo esvaziada de financiadores. O objetivo seria eliminar o exemplo de uma China livre, autêntica e próspera – uma China sem o Partido Comunista.
Alguma jogada militar é provável? Pode parecer que o tempo é propício para Xi, com os Estados Unidos aparentando fraqueza e menor inclinação a comparecer para ajudar – e tais preocupações estão ainda mais fortes agora, dada a invasão da Ucrânia pela Rússia e a presente guerra no país. Referências contínuas a Taiwan nos discursos de Xi parecem projetadas para preparar a opinião pública global e local para uma operação militar. Um ataque também demonstraria que a China agora tem poderio militar, ajudando a apagar a memória de muitas derrotas externas – na Coreia em 1950, no conflito com a Rússia em 1969 e contra o Vietnã em 1979.
A guerra com Taiwan tornaria possível reunir o povo chinês em torno de uma causa nacional? Para Xi, o nacionalismo poderia servir como ideologia substituta para o marxismo-leninismo que agora parece cada vez mais oco. Mas isso seria algo importado do Ocidente, já que os chineses nunca praticaram o nacionalismo; tradicionalmente, cada pessoa era de sua própria província cuja língua falava, enquanto via a si mesma como súdita do imperador. Com Mao, uma conversão para a revolução permanente era necessária – mas não para o nacionalismo. Ao se supor que o povo chinês endossaria em massa a tomada de Taiwan, o que eu duvido, e ao se supor além disso que o exército chinês se mostraria disposto a um combate sem precedentes, permanece a questão das forças taiwanesas e, na ausência possível dos americanos, uma intervenção do exército e frota japoneses, que estão entre os mais avançados tecnologicamente do mundo. Nos panoramas geopolíticos em torno da China, muitas vezes nos esquecemos do Japão – e isso é um erro.
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Mais preocupante para o ocidente é algo que ainda está emergindo: uma inovação política extraordinária que as autoridades chinesas consideram uma alternativa sem rival à democracia ocidental. Chamemo-la de despotismo tecnológico. Até o regime de Xi Jinping, o Partido Comunista pós-Mao buscara combinar o crescimento econômico com a segurança pública, enquanto empregava uma força de segurança que trabalhava para assegurar que nada escapasse ao alcance do partido. Mas agora, o acúmulo de dados pessoais está levando o despotismo a novos níveis, com computadores de alta capacidade permitindo que o governo mantenha arquivos a respeito de cada pessoa chinesa e atribua a cada uma um algoritmo que rastreia comportamentos e expectativas, estabelecendo pontos de “crédito social”. Assim, o Estado saberá o que toda pessoa deseja e teme e poderá entregar bens e serviços personalizados – ou sancionar todo desvio da linha partidária – com precisão.
Esse sistema já existe para atribuir créditos para bens de consumo ou para obter acomodação especialmente nas grandes cidades da China. Ele é impulsionado pela tecnologia de reconhecimento facial, que é muito avançada na China e permite que o governo identifique comportamento indesejado e monitore pessoas que não são da etnia han, inclusive uigures e tibetanos, que são suspeitos por definição. Nas ruas de Urumqi, a capital de Xinjiang, as câmeras que se proliferam pela cidade possibilitam identificar imediatamente os uigures por sua fisionomia e prender supostos delinquentes islâmicos e encarcerá-los em campos de reeducação.
As autoridades chinesas zombam da democracia ocidental por sua desordem e ineficiência. Mas sem uma alternativa real, o Partido Comunista há muito imita as formas externas de democracia. O povo elegeu representantes, prefeitos e membros de assembleias – mas as eleições eram paródias, com resultados unânimes. Algumas tentativas genuínas de eleições locais aconteceram em vilas no começo dos anos 2000. Testemunhei várias delas, junto com Jimmy Carter, cuja fundação financiou a compra de cédulas de votação e a impressão de boletins. O experimento se mostrou desastroso para o Partido Comunista, com candidatos independentes vencendo com regularidade os nomes do partido. Depois de mais ou menos um ano, o governo voltou aos simulacros de eleições, fechando uma rara brecha que tornou possível ver o que muitos chineses realmente pensam do partido.
O sentimento nacional permanece misterioso hoje, ao menos para o mundo exterior. Se posso confiar nas minhas próprias observações, que estão longe de científicas, os chineses que conheço renunciaram à ação política e se refugiaram na vida da família. A resistência ao Partido Comunista ainda aparece de forma privada. Quando Deng Xiaoping, buscando limitar o crescimento populacional, ordenou que as famílias tivessem apenas um filho, muitos casais tiveram dois, apesar das multas impostas. Depois Xi, preocupado com uma população em rápido envelhecimento, ordenou que as famílias tivessem dois filhos; mas muitos pais decidiram ter apenas um.
Até a paródia de democracia logo será abandonada. Em um novo despotismo tecnológico, o que os chineses continuarem a pensar em sua intimidade escapará dos algoritmos – mas o partido não se importará com isso. O que vai importar será o comportamento conspícuo: a conformidade à linha partidária importa pela vigilância onipresente. Xi alega que isso permitirá que a sociedade floresça; como ele diz, o Partido Comunista “realmente se esforça pela felicidade do povo chinês”. Podemos desdenhar desse projeto que se assemelha à ficção científica, mas as autoridades da China nele veem um futuro que garantirá o poder eterno do Partido Comunista.
O mais provável na China, no entanto, mesmo na era do controle algorítmico, continua sendo o inesperado. Um vírus que começou a infectar pessoas em Wuhan, no final de 2019, acabou rompendo as cadeias de abastecimento que ligavam a China ao mundo, cortando a taxa de crescimento pela metade por um tempo – e lançando uma pandemia global que matou milhões e transformou economias, alterou arranjos políticos e deixou ramificações sociais e culturais que levaremos anos para absorver e entender (E a Covid-19, qualquer que seja a sua origem, não fará bem ao soft power da China também, tal como está).
Além disso, a Covid está longe de acabar na China. Na verdade, a pandemia – junto com a política ambiciosa de “Covid zero” do governo em resposta a ela – agrupa exemplos tanto do despotismo tecnológico crescente da China quanto da possibilidade de instabilidade generalizada. Até o fim de abril de 2022, Xangai, uma cidade de quase 25 milhões, estava na quarta semana de um quase total lockdown imposto com barreiras, pontos de checagem, legiões de policiais com roupas de proteção sanitária e drones voando enquanto instruíam os moradores a “controlarem o desejo de liberdade de sua alma”, mesmo que eles tivessem dificuldades de assegurar entregas de comida e outros itens essenciais. Ao mesmo tempo, em Pequim, os casos estavam subindo e seus quase 22 milhões de habitantes estavam se preparando para um destino parecido.
Também não podemos descartar a possibilidade de novos movimentos sociais emergirem na China, talvez com inspiração religiosa. A história da China é assombrada por revoltas religiosas que fizeram dinastias caírem.
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Dez anos atrás, ninguém previu uma ascensão econômica tão espantosa quanto a que a China desfrutou. Dois terços da população atingiram o padrão de vida das classes médias dos países ocidentais, ao menos nas aparências.
Apesar disso, a moradia é medíocre, os serviços de saúde são arcaicos e a vida fora das grandes áreas urbanas é difícil. A despeito de um crescimento econômico anual médio pré-pandêmico de 8%, um quarto dos camponeses chineses vivem na pobreza. As vilas da China ocidental não são melhores que as mais pobres da Índia ou da África, mas os habitantes mais vigorosos têm a oportunidade de deixá-las para irem a locais de trabalho no Leste ou no Sul. Lá eles serão explorados, e não têm direitos pois seu passaporte doméstico, ou hukou, ata-os a seu lugar de origem, para onde a polícia pode mandá-los de volta a qualquer momento.
Esse exército reserva do proletariado, para tomar de empréstimo o vocabulário de Marx, exerce uma pressão que baixa os salários chineses e contribui para a competitividade internacional das indústrias do país. A China comunista permaneceu sendo, a esse respeito, um modelo da economia clássica.
Deng Xiaoping foi o primeiro líder chinês a entender que a China não poderia inventar um modelo original para o crescimento e que ela teria de se dobrar às leis científicas da economia. O governo devolveu as terras que Mao havia coletivizado aos camponeses que, mais uma vez proprietários de terras, voltaram ao trabalho. Tiveram sucesso em se alimentar, suprir comida para as cidades e em colher o valor excedente e libertar parte da força de trabalho. Isso permitiu que as fábricas operassem a baixo custo e começassem a exportar para consumidores ocidentais. Os lucros acumulados assim tornaram possível modernizar os métodos de produção. Nunca houve um “milagre” econômico chinês, mas só a aplicação das leis da economia clássica a uma sociedade sedenta por escapar da pobreza com trabalhadores impedidos de se rebelar contra horas abusivas de trabalho e baixos salários.
Para além do que ele toma emprestado da economia clássica, o modelo tem características distintivas que não podem ser replicadas. Sabemos mesmo que o Partido Comunista quer que o um quarto de empobrecidos seja absorvido pela economia geral? Um exemplo recente me deixa cético: Shein, uma líder mundial de roupas baratas, tem escritório na cidade de Guangzhou e copia novos estilos dentro de 48 horas após aparecerem em Paris, Londres ou Nova York. A produção das cópias é atribuída a milhares de subcontratantes que por sua vez subcontratam até às vilas mais isoladas, onde os custos do serviço são mínimos. Em menos de uma semana, os estilos completos voltam a Guangzhou, de onde são exportados para o mundo a um quarto do preço dos competidores europeus ou americanos. Os trabalhadores desconhecidos das vilas permanecem desconhecidos, sem direito a contratos futuros ou proteção social. O chefe da Shein, um americano de origem chinesa, reconheceu que a linha de roupas foi feita no “oeste distante” – isto é, o extremamente pobre ocidente chinês. O método de produção da Shein é generalizado na China, que agora exporta mais para países de desenvolvimento médio na Ásia, África e América Latina do que para o Ocidente avançado.
A história econômica chinesa recente exemplifica a teoria clássica da divisão do trabalho, identificada por Adam Smith em seu livro A Riqueza das Nações, de 1776. O que pode ser realmente miraculoso é que a conversão da China à economia clássica coincidiu com uma globalização sem precedentes históricos do comércio. É o acesso ao mercado global, na ausência de um mercado doméstico líquido, o que estimulou tanto crescimento anual.
Os chineses também tomaram emprestado do modelo clássico o papel-chave da inovação. O crescimento, nessa perspectiva, é baseado primeiro em um êxodo rural que aumenta a produtividade, e depois na inovação, que assume a dianteira. Mas a inovação custa muito antes de render bens e serviços comercializáveis – ao menos que se pegue um atalho, como fez o Japão nos anos 1920 e a Coreia do Sul nos anos 1950: copiar o que outros fizeram. Os chineses não inventaram a pirataria sobre patentes e a propriedade intelectual, mas a sistematizaram em grande escala e até a melhoraram.
Os trens de alta velocidade são um exemplo. Nos anos 2000, os chineses pediram a líderes globais na montagem de tais trens que submetessem propostas de projetos para um sistema chinês, o que eles aceitaram. Os engenheiros chineses examinaram de perto esses modelos e combinaram seus elementos para desenvolver uma versão chinesa melhorada. Esse método de recombinação ou “gambiarra” tornou-se um método de aplicação comum na China. Os chineses não pensam que estão copiando, e chegam a registrar patentes de forma a dar proteção legal à abordagem deles. Isso ajuda a explicar por que motivo os chineses parecem registrar o maior número de patentes do mundo, embora essas só sejam reconhecidas dentro da China. Para medir a real capacidade de inovação da China, deve-se observar as patentes ditas de “tríade” – isto é, reconhecidas nos Estados Unidos, Europa e Japão. Sob essa classificação, os Estados Unidos continuam liderando com vantagem, seguidos pelo Japão e pela Europa. A China, assim como a Índia e a Rússia, é mais ou menos invisível. O futuro não será escrito na China, mas nos Estados Unidos.
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No final de 2021, sob o pretexto de conter o comportamento monopolista, Xi Jinping reprimiu a expansão das duas maiores empresas de serviços da internet chinesa: a Tencent e a Alibaba. Foram proibidas de levantar mais fundos ou estender ofertas de serviços sem a aprovação do governo. Observadores ocidentais ficaram estupefatos, pois essas empresas e seus fundadores haviam sido celebradas antes e elevadas como exemplos de sucesso para a juventude chinesa.
Pensando bem, no entanto, essa jogada de poder – mesmo com o custo de desacelerar a economia nacional e as suas capacidades técnicas – é consistente com a natureza do regime. É permissível ganhar dinheiro contanto que não lance dúvidas sobre o domínio do Partido Comunista. As firmas sancionadas também estavam juntando dados sobre o povo chinês, mas o partido se considera o único autorizado a controlar tais dados, que são uma das principais ferramentas do despotismo tecnológico emergente.
Tudo pelo partido, para o partido e sob o controle do partido – este poderia ser o lema do regime. Mas o que é o partido? Ele não é o Estado. O Estado funciona como uma administração, como no Ocidente, mas toda decisão que ele toma é supervisionada pelos oficiais do partido – comissários políticos inseridos em todos os órgãos do poder político, econômico e judiciário. Todas as autoridades, públicas e privadas, são geralmente, embora não necessariamente, membros do partido. O que mais importa é que respondam aos comissários políticos acima delas.
Na cúpula do Partido Comunista, encontram-se, na maior parte, homens e engenheiros. Filósofos e sociólogos são mais raros; o partido está nas mãos de uma tecnocracia muito diferente em seu recrutamento e temperamento do mandarinato do Império, que era feito de homens cultos, versados em literatura e filosofia política. Para um partido que enxerga a si mesmo como marxista, encontram-se poucas mulheres ou trabalhadores em sua nata de decisores.
Outra particularidade do partido é o seu caráter dinástico. Os líderes são quase todos filhos de líderes, inclusive o próprio Xi. Se fosse preciso sintetizar ao extremo, a China está nas mãos de dinastias tecnocráticas para as quais nada é mais importante do que manter e transmitir o poder. Se por acaso o partido mudar de curso, o que aconteceu muito nos dias de Mao e depois dele, isso é um resultado de revoluções palacianas – brigas mortais entre dinastias mandatárias.
Um jeito eficaz de se livrar de rivais aperfeiçoado por Xi consiste em acusá-los de corrupção. A acusação é fácil de sustentar porque a corrupção é generalizada no partido – do “envelope vermelho” deslizado para um apparatchik do baixo escalão que lhe dá o direito de abrir uma loja ou de construir um prédio à concessão de contratos estupendos no topo, passando por um membro da família ou uma concubina favorecida na corte. Certa feita, há muito tempo, o governo francês me deu a tarefa de entregar um envelope importante a uma cortesã para obter para uma empresa francesa o contrato para construir uma casa de ópera. Infelizmente a cortesã tinha homônima e eu abordei a pessoa errada. Sem problemas; pediram-me para fazer outra viagem e entregar um segundo envelope, e a transação foi concluída.
Esse exemplo, fora a gafe, não é isolado, mas uma prática comum nas relações comerciais entre o mundo dos negócios ocidental e seus interlocutores chineses. A chave para o sucesso é identificar o intermediário correto para subornar, que então tomará conta de tudo. Essa prática provavelmente explica o entusiasmo dos executivos ocidentais pelo modelo chinês, já que, por uma quantia determinada, eles podem derrubar barreiras burocráticas e violar todas as regras. É mais simples que nos Estados Unidos ou Europa de hoje, onde se deve observar tantas exigências sociais ou ambientais.
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Nas relações entre a China e os Estados Unidos, as autoridades americanas, junto a muitos comentadores, parecem inverter a fórmula famosa de John Quincy Adams, de 1821, que alerta contra sair para terras estrangeiras “em busca de monstros para destruir”. Basta analisar a China, como ela realmente é, para ver que ela não é o inimigo nem sequer um verdadeiro competidor dos Estados Unidos. Como testemunho, considere os mais de 300 mil estudantes chineses nos Estados Unidos que desfrutam de liberdade e aprendizado indisponíveis na China. A China com frequência serve como uma ameaça imaginária que distrai os americanos de suas rusgas domésticas da mesma forma que as autoridades chinesas acusam os americanos de interferência para distrair o seu próprio povo da sua falta de liberdade, da mediocridade de sua vida cultural, da opressão dos trabalhadores e da pobreza rural.
A atitude realista acertada a ser adotada pelos Estados Unidos, para mim, deve se fundar em dois pilares. Primeiro, seria bom conhecer os chineses melhor – o povo e seus líderes, suas frustrações e ambições. O segundo pilar pode ser inspirado em uma estratégia que se mostrou eficaz para confrontar a União Soviética: a contenção. A China tem o direito de se desenvolver e sua inclusão na ordem global é um benefício líquido para os chineses, como pode ser para os não-chineses. A China tem o direito de estar presente em todas as instituições internacionais. Mas não tem o direito à agressão. Encorajar o desenvolvimento econômico e desencorajar a agressão – essa parece ser uma atitude direcionada à China que os Estados Unidos e a Europa podem compartilhar. A China como um monstro a ser destruído, por outro lado, seria um erro de análise. A China não se encaixa nesse papel; não pode ser comparada com a URSS. Os soviéticos queriam conquistar o mundo e exportar a sua ideologia. A China não tem essa ambição. Ela só exige o lugar que, de acordo com as suas autoridades, ela merece. Este é da ordem da negociação, não da guerra.
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Guy Sorman é editor contribuinte do City Journal e intelectual público francês, autor de muitos livros, incluindo Império das Mentiras: A Verdade sobre a China no Século XXI [trad. livre] e A Genialidade da Índia [trad. livre].