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China envia soldados para fronteira do Afeganistão, enquanto EUA consideram sair do país

Soldados chineses foram vistos na remota cidade de alta altitude de Murghab, no Tajiquistão | Gerry Shih/The Washington Post
Soldados chineses foram vistos na remota cidade de alta altitude de Murghab, no Tajiquistão (Foto: Gerry Shih/The Washington Post)

Três quilômetros acima do nível do mar, nos inóspitos planaltos da Ásia Central, há uma nova potência vigiando uma antiga passagem para o Afeganistão: a China.

Por pelo menos três anos, as tropas chinesas monitoram discretamente esse ponto de passagem estreito no Tajiquistão, um pouco além da fronteira ocidental da China, segundo entrevistas, análises de imagens de satélite e fotografias e observações em primeira mão por um jornalista do Washington Post. 

Embora coberto em sigilo, o posto avançado com cerca de duas dezenas de edifícios e torres de observação ilustra como o poder chinês tem se expandido ao lado do crescente alcance econômico do país. 

O Tajiquistão – inundado de investimentos chineses – junta-se à lista de unidades militares chinesas que incluem o Djibuti, no estratégico Chifre da África, e ilhas artificiais no Mar do Sul da China, no coração do sudeste asiático. 

Enquanto isso, as ambições econômicas do presidente chinês Xi Jinping, nos últimos sete anos, trouxeram uma onda de grandes projetos de investimento, desde o Mar Cáspio, rico em recursos, até o litoral do Camboja. 

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A modesta instalação no Tajiquistão – que oferece um trampolim para o Corredor Wakhan, no Afeganistão, a alguns quilômetros de distância – não foi reconhecida publicamente por nenhum governo. 

Mas sua presença é rica em significado e simbolismo. 

Em um momento em que os Estados Unidos poderiam considerar um pacto que retiraria as tropas americanas do Afeganistão, a China parece estar se aproximando rapidamente de uma região volátil, crucial para sua segurança e suas ambições continentais. 

A retirada das velhas potências e a chegada de novas são perceptíveis no Tadjiquistão, um país pequeno e empobrecido que serviu como porta de entrada para as unidades norte-americanas no Afeganistão nas primeiras fases da invasão de 2001. 

Durante uma recente viagem ao longo da fronteira entre o Tadjiquistão e o Afeganistão, o Post viu um dos complexos militares e encontrou um grupo de soldados chineses uniformizados fazendo compras em uma cidade tadjique, o mercado mais próximo de sua base. Eles tinham a insígnia de uma unidade de Xinjiang, o território chinês onde as autoridades detiveram cerca de 1 milhão de uigures, uma minoria étnica predominantemente muçulmana. 

As repressões contra os uigures foram condenadas internacionalmente como uma violação dos direitos humanos, mas o governo chinês diz que elas fazem parte de uma campanha para isolar seu distante oeste do extremismo islâmico que vem da Ásia Central. 

"Já estamos aqui há três, quatro anos", disse um soldado que deu seu sobrenome como Ma em uma breve conversa enquanto seus camaradas chineses, guiados por um intérprete tadjique, compravam lanches e recarregavam os cartões de seus celulares em Murghab, um alastramento de prédios baixos a cerca de 135 quilômetros ao norte da base. 

Quando perguntado se sua unidade havia interceptado qualquer pessoa que cruzasse do Afeganistão, Ma sorriu. 

"Você deve estar ciente das políticas do nosso governo sobre o sigilo", disse ele. "Mas eu posso dizer: tem sido bem tranquilo". 

Informação pública escassa

Os detalhes sobre as atividades da China nas instalações, algumas das quais ostentam os emblemas chinês e tadjique, não são divulgados. Também não estão claros os arranjos sobre seu financiamento, construção e propriedade. Imagens de satélite mostram o que parecem ser dois aglomerados de edifícios, quartéis e campos de treinamento, a cerca de 16 quilômetros de distância, perto da entrada do Corredor de Wakhan, uma estreita faixa de território no nordeste do Afeganistão. 

Separadamente, o Post falou com membros de uma expedição de montanhismo alemã que disseram ter sido interrogados em 2016 por tropas chinesas que patrulhavam o corredor afegão, perto do assentamento de Baza'i Gonbad. Fotos fornecidas por Steffan Graupner, o líder da expedição, mostraram veículos blindados e equipamentos chineses resistentes a minas com o logotipo paramilitar do país. Em conjunto, os resultados reforçam o crescente número de relatos de que a China, apesar das negações públicas, vem conduzindo operações de segurança dentro do Afeganistão. 

O Ministério das Relações Exteriores da China se recusou a comentar e dirigiu as perguntas ao Ministério da Defesa, que não respondeu aos pedidos de comentários. 

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O Ministério das Relações Exteriores do Tadjiquistão disse que "não há bases militares da República Popular da China no território da República do Tadjiquistão", nem "quaisquer conversações" para estabelecer uma. 

Analistas dizem que os chineses encontrados pelo The Post podem ser unidades paramilitares sob o comando da liderança militar central, mas tecnicamente distintas do Exército Popular de Libertação, a principal força de combate da China. 

Autoridades dos EUA dizem que estão cientes da presença chinesa, mas não têm um entendimento claro de suas operações. Eles dizem que não se opõem à presença, porque os Estados Unidos também acreditam que uma fronteira afegã-tajique porosa poderia representar um risco de segurança. 

A invasão da China no Afeganistão é "fascinante, mas não surpreendente – e deve ser bem-vinda por Washington", disse Ely Ratner, vice-presidente executivo do Centro para uma Nova Segurança Americana, que foi assessor de segurança nacional do vice-presidente Joe Biden (Obama). 

"Podemos e devemos impor mais responsabilidade pelo Afeganistão à China", disse Ratner. "Eles não querem um alvo em suas costas, mas eles têm pegado carona nos dólares americanos e vivem em segurança". 

Apesar de nutrir preocupações com os militantes no Afeganistão há décadas, a China tem relutado em ser vista como aliada de qualquer partido no conflito, muito menos em entrar no conflito. 

Em vez disso, as empresas estatais e os bancos chineses firmaram acordos de infraestrutura, concessões de mineração e empréstimos em toda a Ásia Central e do Sul, o cinturão pobre e turbulento que compõe seu quintal. Seus diplomatas, que têm laços fortes com o Afeganistão, o Paquistão e o Talibã, têm falado sobre o papel da China como um mediador da paz regional – e nunca como um mantenedor da paz. 

Mas a postura global da China está mudando com Xi, que deixou de lado o isolacionismo de longa data do país e falou orgulhosamente sobre a restauração de seu status de grande potência. 

Os estrategistas do Exército Popular de Libertação (PLA) defendem cada vez mais a expansão para além do território chinês com implantações que se seguem à expansão dos "haiwailiyi" (interesse no exterior, em chinês) do país, disse Andrew Scobell, especialista chinês em segurança da Rand Corp. 

"O crescimento pacífico da China encontrou uma situação complicada e severa", escreveu o Major Li Dong em um artigo publicado em 2016, como parte de uma avaliação da estratégia militar da China no exterior. Ele identificou a fronteira da Ásia Central como um dos três principais pontos de conflito, juntamente com a Península Coreana e os mares do leste e do sul da China. 

As implementações da China no exterior carecem de força e "flexibilidade", escreveu Li. "A China deve empurrar o crescimento de sua presença militar no exterior gradualmente". 

Um tabuleiro de xadrez robusto 

Em 2017, a China revelou uma base naval no Djibuti que lhe deu uma posição no Oriente Médio e na África. Instalou infraestrutura – e mais tarde, armamento – no contestado Mar do Sul da China. Um recente relatório do Pentágono previa que uma base do PLA poderia aparecer em breve no Paquistão – uma perspectiva que a China negou. 

Os movimentos de Pequim têm sido igualmente opacos nas montanhas escarpadas do Tajiquistão, Afeganistão, Paquistão e China: o mesmo tabuleiro de xadrez onde a Rússia czarista e o Império Britânico disputavam a influência há 150 anos. 

Não haverá "nenhum tipo de pessoal militar chinês em solo afegão em qualquer momento", disse o coronel Wu Qian, porta-voz do Ministério da Defesa, a repórteres em agosto. 

No particular, os chineses contam uma história um pouco diferente. 

No final de 2017, o Development Research Center, influente think tank do gabinete chinês, convidou um punhado de pesquisadores russos para seus escritórios centrais em Pequim. No que foi anunciado como um seminário privado, os chineses explicaram por que a China tinha uma presença de segurança no Tajiquistão que se estendia ao Corredor Wakhan, segundo Alexander Gabuev, do Carnegie Moscow Center, participante russo. 

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Os pesquisadores chineses se esforçaram para descrever o posto avançado como tendo sido construído para fins de treinamento e logística – não uma ocupação militar. Eles também procuraram avaliar a reação da Rússia com perguntas: Como Moscou veria a entrada da China na sua tradicional esfera de influência? Seria mais palatável se a China empregasse mercenários privados em vez de homens uniformizados? 

"Eles queriam saber quais eram os limites da Rússia", disse Gabuev, que manteve conversas semelhantes com acadêmicos que trabalham com a agência de inteligência chinesa. "Eles não querem que a Rússia seja pega de surpresa." 

Na década de 1990, um grupo separatista Uighur, que se autodenominava Movimento da Independência do Turquestão Oriental, surgiu no Afeganistão sob a proteção do Talibã e ameaçou atacar a China. Embora as autoridades ocidentais e analistas questionem a capacidade do grupo em realizar ataques significativos, isso anunciava o início de uma ameaça extremista à China. 

Desde 2014, centenas, ou provavelmente milhares, de uighures deixaram a China em direção à Síria, e autoridades chinesas, assim como suas contrapartes ocidentais, alertaram sobre a possibilidade de os combatentes se retirarem para a Ásia Central à medida que percam território. Em 2016, a Embaixada da China no Quirguistão foi alvo de um atentado suicida que as autoridades quirguizes atribuíram à Frente al-Nusra na Síria. 

'Você nunca nos viu aqui' 

Fazer a jornada por todo o Tajiquistão, desde a capital, Dushanbe, até o cânion remoto ocupado por soldados chineses, é testemunhar uma paisagem alterada por uma força ainda mais irreprimível do que as tropas: dinheiro chinês. 

No oeste, as usinas movidas a carvão construídas pela China pairam sobre o horizonte, fornecendo eletricidade e aquecimento para os moradores da capital. No leste, os hospitais e escolas financiados pela China se erguem do campo difícil. No sul, pistas financiadas pela China contornam uma ferrovia crucial da era soviética que havia sido fechada pelo vizinho do Tajiquistão, o Uzbequistão. Costurando todos juntos, há túneis chineses e asfalto de fabricação chinesa que reduzem o tempo das viagens ao longo da sinuosa rodovia leste-oeste do país. 

Os projetos refletem a posição estratégica do Tadjiquistão na Iniciativa Cinturão e Estrada da China (BRI), um ambicioso plano de investimento em infraestrutura para colocar a terra eurasiática em seu abraço econômico. A China, através de um único banco estatal, detinha mais de metade da dívida externa do Tajiquistão em 2016 (comparado a nada em 2006), de acordo com dados do Ministério das Finanças do Tajiquistão de 2017. 

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Na questão da influência, os Estados Unidos e a Rússia parecem estar perdendo terreno relativo para a China, que fornece bolsas de estudo para alunos de graduação Tajiques e academia militar para oficiais de defesa em ascensão. 

Susan Elliott, ex-embaixadora dos EUA no Tajiquistão, disse que a generosa ajuda e o financiamento da China devem ser aplaudidos, mas vistos com ceticismo. No ano passado, um punhado de países que fizeram investimentos chineses reconsideraram os acordos da BRI em meio a alegações de corrupção e baixa viabilidade. 

"Se alguém está oferecendo dinheiro para construir estradas e ajudar a colocar linhas de energia, é difícil recusar quando você não tem alternativa", disse Elliott. "Esta é uma parte estratégica e importante do mundo, e precisamos continuar nossas fortes parcerias com o Tajiquistão e outros países da região". 

De muitas maneiras, as mudanças geopolíticas acontecem nas ruas ventosas de Murghab, estabelecidas como um posto avançado do exército na década de 1890 pelos cossacos russos. 

Hoje em dia, são as tropas chinesas que estão passando em suas minivans despretensiosas para buscar provisões. 

Aiperi Bainazarova, gerente de meio período do único hotel da cidade, disse que os moradores acreditam que há dezenas, talvez centenas, de soldados chineses na base. Eles vêm principalmente para a cidade para comprar créditos de telefone. Às vezes eles compram centenas de quilos de carne de iaque ao preço de 30 somoni – cerca de US$ 3 – por quilo, disse ela. 

"Isso ajuda a economia", disse Bainazarova, de 21 anos, um quirguiz étnico que estudou com uma bolsa do governo chinês em Xangai. 

Apesar da insistência do governo chinês em manter as coisas em segredo, as visitas periódicas de suas tropas ao bazar de Murghab, uma fila de contêineres convertidos em lojas, demonstram tudo menos isso. 

Safarmo Toshmamadov, uma comerciante de Pamir de 53 anos, disse que eles vão a loja dela há talvez três anos. Alguns tentam algumas palavras de russo – embora eles sempre estejam acompanhados por intérpretes tajiques, ela disse. 

"Nós não pensamos sobre eles, e eles não nos incomodam", disse Toshmamadov, encolhendo os ombros. "Eles compram minha água e lanches. É bom." 

Certa tarde, do lado de fora da loja de Toshmamadov, um repórter do Post viu Ma, o soldado chinês, que inicialmente se surpreendeu ao encontrar outro falante chinês. 

Ele falou cautelosamente, mas afavelmente sobre a sua implementação, que ele explicou ser segredo. 

"Você deve conhecer as políticas padrão do nosso governo em torno da divulgação de informações", disse ele. "Então não conte aos seus amigos." 

Quando pedido para posar para uma foto em conjunto, Ma recuou. 

"Lembre-se", ele disse, indo embora. "Você nunca nos viu aqui."

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