Enquanto as vacinas contra o novo coronavírus são um produto escasso e em alta demanda no mundo todo, os países capazes de produzir as suas próprias doses têm a chance de usá-las não só para imunizar a sua população, mas também para aumentar sua influência no cenário internacional.
Rússia, Índia e China (ou três quintos dos Brics) têm aproveitado a oportunidade para usar as suas vacinas como uma ferramenta diplomática, com exportações ou doações de doses a países em desenvolvimento, potencialmente movimentando alianças geopolíticas.
O presidente da França, Emmanuel Macron, disse que os "sucessos diplomáticos" da China ao distribuir vacinas para outros países poderiam ser vistos como "um pouco humilhante para nós, [líderes ocidentais]". Falando ao think tank Atlantic Council no começo do mês, Macron ainda cobrou transparência dos fabricantes chineses de vacinas contra a Covid-19.
A China tem usado a diplomacia das vacinas em um esforço para reparar o estrago na sua imagem após o coronavírus ter se espalhado a partir do seu território - e por não ter sido transparente no início do surto. Como a epidemia está aparentemente controlada no território chinês, o país tem a possibilidade de concentrar mais esforços na distribuição de vacinas para o mundo.
A primeira doação de vacinas da China foi para o Paquistão, que recebeu no começo do mês 1,2 milhão de doses do imunizante da Sinopharm. O plano de Pequim é enviar doses gratuitamente para mais de uma dúzia de países da África e da Ásia.
Da corrida espacial à corrida pelas vacinas
A Rússia foi o primeiro país a aprovar uma vacina contra o coronavírus, ainda em agosto de 2020. A Sputnik V, batizada em homenagem ao satélite soviético que foi o primeiro a orbitar a Terra, ainda não havia passado pela etapa final dos testes clínicos quando o presidente Vladimir Putin anunciou que o seu uso estava autorizado no país. Até então, nenhum dado da pesquisa havia sido publicado e por isso a vacina foi recebida com desconfiança pelo mundo. Mas a publicação dos resultados finais dos testes com a Sputnik V no Lancet no início de fevereiro, que mostrou que o imunizante tem eficácia de 91,6%, ajudou a dissipar as preocupações da comunidade científica.
A pressa em ser o primeiro a ter a vacina de que o mundo inteiro precisa demonstra a estratégia de Putin de tentar reconquistar para a Rússia o status de grande potência global. Para isso, o país busca expandir suas zonas de influência e contrabalançar o poder dos Estados Unidos. E a América Latina é peça importante nesse jogo diplomático.
No continente, a Argentina foi o primeiro país a dar o sinal verde para a vacina russa e abriu caminho para que ela chegasse a vizinhos da região. O governo de Alberto Fernández enviou missões a Moscou em outubro e dezembro de 2020 para inspecionar os dados dos testes com a Sputnik V. A delegação argentina traduziu para o espanhol centenas de páginas de informações sobre a vacina russa, um passo necessário para a aprovação, e compartilhou o documento com outros países, incluindo México, Bolívia, Peru, México, Uruguai e Chile, segundo noticiou o El País.
A Rússia já tinha se posicionado anteriormente na região, como aliada da Venezuela. Enquanto grande parte do mundo pressionava o regime de Nicolás Maduro, Moscou era um de seus principais apoiadores (ao lado da China), uma ligação estratégica que permite à Rússia marcar presença no "quintal" nos Estados Unidos.
Como consequência desses laços, a Venezuela fez parte dos ensaios clínicos da Sputnik V e em dezembro assinou um contrato para a compra de 10 milhões de doses. Na terça-feira (9), o ditador Nicolás Maduro anunciou que a Venezuela receberá na próxima semana as primeiras 100 mil doses da Sputnik V.
A União Europeia até o momento não aprovou uma vacina da Rússia ou da China. Mas em meio à frustração dos países membros com a lentidão da resposta do bloco à vacinação, um país decidiu autorizar o uso de vacinas antes mesmo da aprovação dos reguladores da UE: a Hungria permitiu, nesta semana, o uso da Sputnik V e da vacina da chinesa Sinopharm em seu território, tornando-se o primeiro país a romper com a estratégia coletiva de vacinação coordenada pela UE. Uma regra permite aos países autorizar medicamentos em emergências, mas, nesse caso, a responsabilidade sobre o uso fica com os governos.
Outros países da União Europeia também demonstraram interesse em comprar a Sputnik V. Mas a Comissão Europeia já indicou que o bloco não pretende comprar nem distribuir o imunizante russo. A agência regulatória EMA pode, no entanto, conceder a autorização para a vacina, que poderia então ser comercializada nos países do bloco.
Para o primeiro-ministro da Ucrânia, Denys Shmyhal, a Rússia está usando a sua vacina para conquistar influência política nos territórios em conflito na Ucrânia e em países do leste europeu. Ele disse ao site Politico que e União Europeia deveria ajudar países parceiros que estão com dificuldades em garantir doses.
"A Federação Russa está tentando impor sua própria vacina produzida domesticamente especialmente como uma ferramenta para influenciar algumas dessas regiões, especificamente aquelas que não são controladas pelo governo ucraniano. Isso não é apenas aqui, mas também em muitos países do leste europeu", afirmou o primeiro-ministro ucraniano.
Para ele, para combater essa "propaganda política", seria importante mandar a mensagem de que esses países estão tendo apoio da União Europeia em relação à vacinação.
A farmácia do mundo
A Índia, maior produtor de medicamentos genéricos do planeta, já era conhecida como a "farmácia do mundo". O país produz atualmente 62% da demanda global de vacinas. Durante a pandemia, a Índia exportou medicamentos, insumos médicos, equipamentos de saúde, kits de testes, entre outros, para dezenas de países.
O governo indiano apoiou medidas para a suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre as vacinas contra o coronavírus durante a pandemia - o que facilitaria a produção de versões genéricas dos novos imunizantes.
O país asiático também desenvolveu localmente suas vacinas contra o coronavírus em empresas como a Bharat Biotech e a Zydus. Já o Serum Institute colabora com a AstraZeneca/ Universidade de Oxford na produção da vacina contra a Covid-19.
Além de lançar a maior campanha do mundo de vacinação contra o novo coronavírus, que tem a meta ambiciosa de imunizar a sua população de 1,3 bilhão de pessoas, a Índia tem fornecido gratuitamente milhões de doses a países da região do Oceano Índico.
O primeiro-ministro Narendra Modi vê na diplomacia das vacinas uma forma de reatar laços com nações vizinhas. Por exemplo, a Índia pretende reparar a relação com Bangladesh, que se desgastou quando Nova Délhi implementou uma controversa lei de cidadania, e pelos investimentos de US$ 40 bilhões da China no país vizinho, relatou o Foreign Policy.
A diplomacia das vacinas também é uma chance para a Índia se acertar com o Nepal, após os dois países terem se envolvido em disputas territoriais, e também de fazer um contrapeso à influência da China, que tem feito investimentos em países como Maldivas e Ilhas Maurício.
No início do mês, o governo brasileiro anunciou a negociação para a compra de 20 milhões de doses da Covaxin, vacina indiana produzida pela Bharat Biotech.