A União Ciclística Internacional (UCI) e a Federação Internacional de Natação (Fina) ajustaram suas regras para a inscrição de atletas transgênero em competições. Os novos regulamentos tratam, principalmente, de novas restrições a atletas que fizeram a transição de homem para mulher. As novas normas para o ciclismo foram divulgadas na última quinta-feira, dia 16, enquanto a Fina aprovou o novo regulamento neste domingo, em meio à realização do Mundial de Esportes Aquáticos, na Hungria.
Baseando-se em estudos científicos publicados em 2020 e 2021, a UCI decidiu aumentar de 12 para 24 meses o período de transição com baixa testosterona dos atletas nascidos homens e que fizeram a transição para se tornar mulheres. “As últimas publicações científicas demonstram claramente que o retorno dos marcadores de capacidade de resistência ao ‘nível feminino’ ocorre dentro de seis a oito meses sob baixa testosterona no sangue, enquanto as esperadas adaptações na massa muscular e força/potência muscular demoram muito mais – dois anos no mínimo, de acordo com um estudo recente”, ressalta o documento.
Além disso, a UCI reduziu pela metade o nível máximo permitido de testosterona no plasma: de 5 para 2,5 nmol/L. Esse valor corresponde ao nível do hormônio encontrado em 99,99% da população feminina.
A Fina – que, além da natação, regula as competições de polo aquático, saltos ornamentais e nado artístico – aprovou seu novo regulamento com 71,5% dos votos no Congresso Geral Extraordinário realizado em Budapeste. O documento é resultado do trabalho de uma comissão que incluiu atletas (inclusive atletas transgênero), ex-atletas, técnicos, cientistas, advogados e especialistas em direitos humanos, e as novas determinações passam a valer já nesta segunda-feira, dia 20.
Assim como a UCI, a Fina também estabeleceu o limite máximo de 2,5 nmol/L de testosterona para atletas transgênero. Além disso, a entidade definiu que, para a participação em competições femininas, a transição de gênero, com supressão da puberdade masculina, precisará ter ocorrido antes dos 12 anos ou antes do estágio 2 da Escala de Tanner, que mede o desenvolvimento sexual. Esta determinação foi motivada pela constatação de que a puberdade cria diferenças significativas e muitas vezes definitivas na competitividade dos atletas. Se a transição ocorrer após a puberdade, diz o texto, “ela eliminará alguns, mas não todos os efeitos da testosterona na estrutura corporal, função muscular e outras determinantes de performance, mas haverá efeitos persistentes que darão a atletas transgênero ‘masculino-para-feminino’ (mulheres transgênero) uma vantagem competitiva relativa sobre mulheres biológicas. Uma mulher biológica não pode eliminar essa vantagem por meio de treinamento ou alimentação, nem pode se administrar testosterona adicional para obter a mesma vantagem, pois a testosterona é uma substância proibida pelo Código Mundial Antidoping”.
A Fina deixou em aberto a possibilidade de criar uma categoria “aberta”, que possibilitaria uma participação mais abrangente de atletas, independentemente de seu sexo biológico ou estágio da transição de gênero, mas afirmou que o estabelecimento dessa categoria dependerá do resultado de um novo grupo de trabalho, que terá seis meses para apresentar uma proposta.
Novos regulamentos surgem em meio a polêmicas
Os novos regulamentos do ciclismo e da natação tentam reduzir as últimas polêmicas das modalidades. Em março, a ciclista transgênero britânica Emily Bridges foi barrada do campeonato inglês feminino de pista. Ela já tinha feito a inscrição ao British Cycling quando a UCI notificou que a atleta só poderia competir na categoria feminina depois que seu cadastro na categoria masculina expirasse. O tratamento hormonal de Bridges começou em 2021.
Em 2019, a canadense Rachel McKinnon, na época com 36 anos, foi a primeira campeã mundial trans de ciclismo de pista, mas o resultado gerou protestos entre atletas da categoria feminina. Ainda em 2019, McKinnon, que é doutora em Filosofia e professora de Filosofia no College of Charleston, nos Estados Unidos, mudou de nome para Veronica Ivy.
A ex-ciclista campeã Victoria Hood foi uma das que se manifestou contra a vitória de Ivy. “A ciência está lá e diz que é injusto. O corpo masculino, que passou pela puberdade masculina, ainda mantém sua vantagem, que não desaparece. Eu simpatizo com eles. Eles têm o direito de praticar esportes, mas não o direito de entrar em qualquer categoria que desejarem”, disse Hood em entrevista ao Sky Sports, em 2019. Em resposta às manifestações, Ivy publicou no Twitter que “campeões de verdade querem uma concorrência mais forte”.
Na natação, o caso mais famoso é o de Lia Thomas, que nasceu com o nome de William e iniciou seu tratamento de transição durante a pandemia de Covid-19, ou seja, depois de ter passado pela puberdade. Competindo pela Universidade da Pensilvânia, Thomas ganhou notoriedade ao quebrar vários recordes, terminando suas provas muito à frente das demais competidoras. Em março deste ano, Thomas venceu provas da NCAA, a entidade que regula as ligas universitárias norte-americanas; no mês anterior, a USA Swimming, federação nacional da modalidade, admitiu que nadadoras transgênero tinha uma vantagem competitiva em relação às mulheres biológicas e lançou diretrizes provisórias até que a Fina definisse de vez a questão.
COI abandonou regra única e deu mais poder a federações em 2021
Em novembro de 2021, ainda sob o efeito da controversa participação de Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, na competição de levantamento de peso nos Jogos Olímpicos de Tóquio, o Comitê Olímpico Internacional resolveu abandonar seu regulamento de 2015, que permitia a participação de atletas que mantivessem o gênero assumido por ao menos quatro anos e tivessem até 10 nmol/L de testosterona no plasma por ao menos um ano antes da competição. O nível permitido desse hormônio era até quatro vezes maior que o limite superior da média das mulheres biológicas. Hubbard saiu de Tóquio sem medalha após falhar em suas três tentativas iniciais de levantar 120 ou 125 quilos, suficientes para ter chances de medalha.
Pelas novas diretrizes do COI, cada federação internacional ficaria responsável por definir suas regras, de acordo com alguns princípios básicos estabelecidos pelo comitê e que foram bastante criticados, como o de “não presunção de vantagem” para atletas transgênero. Mas mesmo antes da decisão do COI algumas federações já haviam adotado regras mais restritas que as do movimento olímpico: a World Athletics, que regula o atletismo, adotou o limite máximo de 5 nmol/L, enquanto a World Rugby proibiu totalmente a participação de mulheres transgênero no rugby feminino, baseando-se em estudos que atestavam risco para as atletas que levassem um tackle de alguém que houvesse crescido como homem.