Ao lado de pescadores cubanos no porto de Havana, Ernest Hemingway (de bigode) exibe um marlim-azul numa fotografia tirada em julho de 1934| Foto: National Archives and Records Administration/Creative Commons

Opinião

Embarcação simboliza a "presença feminina" mais estável na vida do escritor

Hemingway’s Boat ainda não ganhou uma tradução no Brasil, mas é um livro que consegue explicar – como nenhum outro – a relação do escritor Ernest Hemingway com o barco que ele comprou assim que teve condições financeiras para tanto.

E não dá para dissociar o barco do mar, da pesca e de Cuba, três realidades que marcaram a vida do autor de O Sol Também Se Levanta (assim como as experiências na Primeira Guerra Mundial e na Guerra Civil Espanhola).

O barco ainda existe, está em Cuba e se chama Pilar (o nome é de mulher, assim como é feminino o pronome usado em inglês para se referir a uma embarcação: "ela").

Pilar foi, de certa forma, a presença feminina mais constante na vida de Hemingway – ela se estendeu por um período de tempo maior que a soma dos quatro casamentos do escritor. Dessa relação com o barco, dá para imaginar que ao menos o interesse dele por peixes não era bravata (há quem diga que o escritor exagerava quando falava de caçadas, guerras e touradas).

Paul Hendrickson, o biógrafo de Pilar, trabalha com detalhes como se fossem peças minúsculas dentro de um mecanismo complexo que funciona belissimamente.

Um exemplo é a parte em que descreve Pilar pela primeira vez.

"Ela estava apoiada em blocos de concreto, como uma baleia velha e agonizante. (...) Andei ao redor dela. Tirei várias fotografias do casco longo e baixo, da popa de mogno esburacada, da proa quase vertical. Quando os guardas não estavam olhando, estiquei o braço para tocar a superfície. A madeira, marmorizada por fissuras muito finas, estava empoeirada, porosa, seca. Quase descascando. Era como se tivesse febre. Parecia que Pilar estava morrendo de sede".

Irinêo Baptista Netto, editor de Mundo.

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Dezenas de pequenos barcos de pesca balançaram com o tumulto causado na água pela passagem do iate pesqueiro, grande e reluzente, que levava os netos do escritor americano Ernest Hemingway (1899–1961) ao vilarejo que inspirou O Velho e o Mar, um dos livros mais conhecidos do Nobel de Literatura 1954.

Pescadores acenavam para os Hemingways e centenas esperavam no cais para cumprimentar os descendentes do homem que, durante décadas, ia a Cojimar para pescar marlins-azuis, tubarões e atuns nas águas quentes da costa cubana.

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"Ele era um pescador", conta o neto Patrick Hemingway, olhando para os homens ao redor que vieram cumprimentá-lo. "Ele os considerava seus irmãos."

Acompanhados de uma equipe de pesquisadores dos EUA, Patrick e o irmão John passaram uma semana numa missão para encorajar a aproximação do governo americano com Cuba.

A ideia é abrir caminho para cientistas que queiram acessar os diários de pesca do escritor, uma fonte de conhecimento há muito tempo escondida e potencialmente valiosa a respeito dos grandes peixes da região.

Os pesquisadores têm poucas informações coletadas sobre a saúde das populações de peixes submarinos nos anos anteriores à pesca industrial que devastou ecossistemas inteiros de atuns e de outras espécies na segunda metade do século passado.

Os relatos de pescadores esportivos estão entre as pou­­cas fontes disponíveis pa­­ra cientistas marinhos que buscam referências para medir a decadência dos cardumes.

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No mar

Ernest Hemingway morou em Cuba entre 1939 e 1960 em uma vivenda de luxo, com grandes pomares, no vilarejo de San Francisco de Paula, na ponta sudeste de Havana.

De Cojimar, ele costumava lançar ao mar seu barco, Pilar, com a ajuda do imediato Gregorio Fuentes, a inspiração para o velho pescador que luta contra um marlim-azul no romance vencedor do Pulitzer, O Velho e o Mar.

Calor e umidade arruínam os documentos

Estadão Conteúdo

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Um dos primeiros e mais produtivos pescadores esportivos do Estreito da Flórida na primeira metade do século 20, Hemingway pode ter criado inadvertidamente uma fonte científica sem precedentes enquanto rondava uma das zonas de pesca mais ricas do mundo.

Hemingway reuniu centenas de livros, fotografias e diários, muitos dos quais se deterioraram com décadas de exposição ao calor cubano e à alta umidade, além do descaso de longa data do Estado com a propriedade do escritor, conhecida como Finca Vigía.

Os relatórios estão agora guardados no Conselho Nacional de Patrimônio Cul­­tural de Cuba que, para proteger os documentos frágeis, só permite que pesquisadores os manuseiem.

Relatos de pesca geralmente contêm detalhes sobre o número de peixes capturados, a localização de cada fisgada e o peso de cada peixe.

As anotações obsessivas de Hemingway, somadas às milhares de horas que ele passou na água, levaram os pesquisadores a acreditar que os documentos podem fornecer detalhes essenciais sobre as populações de peixes submarinos nos últimos 75 anos, no Estreito da Flórida.

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