Agora é oficial. Titã, a maior das luas do planeta Saturno, possui lagos em sua superfície. O achado coloca definitivamente o astro num grupo seleto, que até hoje só tinha a Terra como membro -- eles são os dois únicos corpos conhecidos no Sistema Solar a possuir um sistema "hidrológico" completo, com a circulação de líquidos entre a atmosfera e o solo.
A descoberta sensacional era há muito tempo ansiada pelos cientistas -- com base em observações telescópicas, eles imaginavam que aquele mundo já possuísse essas características, mas a existência de uma densa densa névoa que encobria o satélite saturnino impedia uma determinação positiva.
Tudo ficou ainda mais estranho depois que a sonda Cassini chegou às imediações de Saturno. Em seus primeiros sobrevôos de Titã, a espaçonave apontou seu radar para a lua -- instrumento capaz de sobrepujar a névoa e obter detalhes da superfície --, mas não encontrou evidência nenhuma de lagos.
Mas uma história diferente foi revelada pela sexta passagem de radar feita pela Cassini em Titã, em 22 de julho de 2006. São sobre esses resultados que disserta um estudo que será publicado na edição desta quinta-feira (4) da revista científica britânica "Nature".
Ali, o grupo liderado por Ellen Stofan, do University College de Londres, anuncia os detalhes da descoberta -- que finalmente faz com que Titã comece a fazer sentido.
"Bem, sim", disse Stofan. "Mas Titã nos surpreendeu tanto que eu não acho que tenhamos chegado ao final da história."
O radar fez o mapeamento de uma pequena região nos arredores do pólo norte de Titã. Naquela área, eles encontraram mais de 75 lagos -- alguns deles tão grandes quanto o Mar Morto, na Terra, com mais de 70 quilômetros de extensão.
A diferença, claro, é que os corpos líquidos na superfície terrestre são compostos de água. Em Titã, que fica muito mais longe do Sol e é muito mais frio, a água existe apenas em forma congelada e se apresenta como rocha sólida. O que é líquido por lá é o metano, um composto orgânico relativamente simples que, aqui na Terra, é conhecido por ser o resultado do metabolismo de formas de vida.
Lagos polares
Ao que parece, e contrariando o que antes imaginavam os cientistas, a umidade do ar só atinge um nível que permite a permanência de corpos líquidos em Titã perto dos pólos -- daí a dificuldade inicial em localizar os lagos.
E os pesquisadores esperam que existam mudanças sazonais ao longo do ano -- que lá, em razão da grande órbita de Saturno ao redor do Sol, deve durar o equivalente a cerca de 29 anos terrestres. Por isso, a equipe quer continuar observando as mesmas regiões ao longo do tempo, para ver se os lagos no pólo norte começam a secar e outros no pólo sul começam a aparecer. Na verdade, há evidência de lagos secos no pólo norte, então não é nada improvável que isso aconteça.
A pergunta é: com um ano que é 29 vezes maior que o terrestre, haverá vida útil remanescente na Cassini para observar alguma alteração significativa? "Achamos que sim", diz Stofan. "Teremos pelo menos mais um ano na missão inicial da sonda, e então pelo menos mais alguns se conseguirmos fazer uma missão estendida. Estamos confiantes de que poderemos ver mudanças nos lagos mesmo nesse curto espaço de tempo."
Se as estimativas dos cientistas estiverem corretos, até 4% de toda a superfície de Titã pode estar coberta por lagos de hidrocarbonetos (sobretudo metano) líquidos.
Mistérios inacessíveis
Embora boa parte do ciclo metanológico de Titã (o equivalente do ciclo hidrológico na Terra) esteja a essa altura razoavelmente compreendida pelos cientistas, há algumas coisas que dificilmente serão passíveis de investigação a partir da órbita. Por isso, os pesquisadores liderados por Stofan aproveitaram o final do estudo para iniciar a campanha "Vamos mandar uma sonda para pousar em Titã".
Mas outra? A sonda européia Huygens já pousou naquele mundo em janeiro de 2005 -- infelizmente, longe de qualquer lago, para permitir uma investigação mais atenta da composição desses corpos líquidos.
"Várias propostas para sondar a superfície de Titã tem sido investigadas -- usualmente envolvendo algum tipo de mobilidade", diz Stofan. "Em vez de jipes, gostaríamos de ter algum tipo de nave-balão, que pudesse descer e visitar um lago, e então subir e ir para o próximo. O que nós realmente queremos fazer é estudar a química desses lagos -- descobrir que tipo exótico de química orgânica acontece lá! Titã tem todos os blocos construtores da vida, então seria interessante estudar os líquidos e provavelmente o lodo orgânico no fundo dos lagos."
E a missão seria para quando? "Nenhuma data seria cedo demais para mim!", entusiasma-se a pesquisadora. "Mas a tecnologia envolvida é complicada, de forma que uma missão assim deve estar pelo menos a uma década de distância, infelizmente."
A velha Terra?
O grande entusiasmo dos cientistas por Titã vem, de fato, da perspectiva de que o satélite natural de Saturno seja muito parecido com o que a Terra foi em seus primórdios, quando o planeta dava seus primeiros passos rumo ao surgimento da vida.
Para Stofan, as novas descobertas estão realçando essa visão. "Demonstramos que há lagos lá, e achamos que eles variem conforme a estação do ano. Mas o fato de que eles devem persistir na superfície por algum período de tempo me dá esperança de que reações químicas complexas tenham ocorrido ou estejam ocorrendo lá. Eu pessoalmente acho que analisar os materiais nesses lagos é crítico para entendermos a vida no Sistema Solar."
Embora admita que, pelos padrões terrestres, a vida seria impossível em Titã, a pesquisadora não descarta essa possibilidade. "Eu acho que, ao explorarmos o Sistema Solar, não podemos abordá-lo com uma visão muito baseada na Terra. Titã é provavelmente frio demais pelos padrões da vida que evoluiu na Terra", diz. "Mas eu acho que o Sistema Solar nos surpreende continuamente quando o exploramos -- algumas coisas são previsíveis com base em nosso entendimento da Terra, mas outras coisas nos surpreendem completamente. Eu acho que, conforme finalmente explorarmos o subsolo de Marte, os oceanos subterrâneos de Europa e os lagos de Titã, sou otimista com a possibilidade de a vida aparecer em formas que nos surpreendam."