Uma guerra civil que começou em 2014 no Iêmen e que tem o envolvimento direto da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes tornou-se a maior crise humanitária do mundo, superando inclusive a da Venezuela.
O que começou com poucas pessoas fugindo da guerra civil no Iêmen em dezembro, segundo o Washington Post, tem se aprofundado. Centenas abandonam as suas casas a cada dia. Os campos de refugiados têm se espalhado pelo Sul do país, multiplicando a pressão sobre as agências humanitárias ocidentais. São mais de 2 milhões de pessoas que foram obrigadas a fugir de suas casas.
A situação pode persistir no médio prazo. Negociações de paz fracassaram no último final de semana. Tropas iemenitas, apoiadas pelos sauditas, tentam ocupar o porto estratégico de Hodeida, na costa do Mar Vermelho, por onde entram três quartos da ajuda humanitária ao país.
“A situação só tende a piorar”, disse Kelly McFarland, diretor de programas e pesquisa do Instituto para o Estudo da Diplomacia da Universidade de Georgetown (EUA). E um exemplo desse cenário foi exposto nesta semana pela instituição de caridade britânica Save the Children: ela estima que mais de 5 milhões de crianças estão correndo risco de fome, por causa da ofensiva da coalizão saudita.
Como começou a guerra civil no Iêmen?
O Iêmen vive uma persistente instabilidade política. O então presidente Ali Abdullah Saleh foi derrubado em 2011, dentro dos movimentos que marcaram a Primavera Árabe. Chegou-se a formar um movimento para conduzir a transição, incluindo todos os partidos políticos que forneceriam sugestões para reformas. Também seriam realizadas eleições e, eventualmente, seria escrita uma nova constituição. Mas as iniciativas fracassaram.
“O movimento houthi inicialmente participou, mas acabou se desiludindo”, diz Kelly McFarland, diretor de programas e pesquisa do Institute for the Study of Diplomacy da Georgetown University (EUA).
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Concentrados no Norte do país, os rebeldes começaram, a partir de 2014, ocupar partes do país. “E aproveitando a instabilidade da região, eles tomaram a capital Sanaa”, diz o professor Márcio Scalércio, do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Não foi a primeira rebelião dos houthis contra o governo iemenita. Segundo McFarland, entre 2004 e 2010 houve seis conflitos, o último deles com intervenção da Arábia Saudita.
Quem são os houthis?
De um lado do conflito estão os houthis, um movimento político e religioso formado por muçulmanos xiitas que seguem a linha zaidi, e do outro, o governo do Iêmen. Segundo a ONG Minority Rights Group International, que defende os interesses de minorias no mundo, os zaidistas correspondem a aproximadamente 40% dos 28 milhões de habitantes.
“É uma minoria extremamente empobrecida”, diz Scalércio. Eles tiveram um papel ativo na política do país do Oriente Médio até 1962, quando foi derrubada a monarquia iemenita. “Desde então, o governo vem reprimindo econômica e culturalmente a sua região. Mais recentemente, o governo acusou os zaidis de serem aliados do Irã e uma ameaça existencial”, diz McFarland.
Por que a região é importante?
A localização geográfica do Iêmen contribui para a sua importância estratégica. Pelo Mar Vermelho passa um terço do petróleo mundial. Segundo o Soufan Center, um think tank especializado em questões de segurança baseado em Nova York, qualquer negociação para um acordo de paz precisa levar em consideração a importância geográfica do país, as influências regionais e os interesses globais no Iêmen
Que países estão envolvidos no conflito?
A guerra civil do Iêmen é o retrato da disputa geopolítica entre a Arábia Saudita e o Irã. Os sauditas veem os houthis como aliados dos iranianos e temem que estes se fortaleçam na Península Arábica. Segundo McFarland, o Irã fornece ajuda há tempo para o movimento houthi e vem equipando e treinando o grupo desde 2011.
O Soufan Center destaca que a Árabia Saudita vê o Iêmen como área de importância crítica, exercendo controle sobre áreas estratégicas e fornecendo apoio para várias tribos.
Na batalha pela influência na região, o Irã tornou-se um participante relevante no conflito. A atuação, segundo o think tank, é uma forma de “sangrar e humilhar a Arábia Saudita no contexto de sua guerra regional existencial contra os sauditas”.
O Irã está fornecendo ao movimento Houthi armas, incluindo mísseis balísticos de curto alcance, que teriam sido usados para atingir alvos na Arábia Saudita, inclusive na periferia da capital Riad.
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Já os Emirados Árabes Unidos – um dos principais aliados dos sauditas - vêm afirmando agressivamente seu interesse pelo Iêmen, especialmente no sul, solidificando sua base de poder nas cidades estratégicas de Aden e Hadramaut. “Agora são vistos por alguns - iemenitas e parceiros de coalizão - como uma força de ocupação no país”, ressalta o think tank.
Mas o interesse no conflito não se restringe a esses países, lembra Scalércio, da PUC-Rio. Outros que estão apoiando a Arábia Saudita são o Bahrein, o Egito, o Marrocos e o Sudão. Estados Unidos e o Reino Unido estão fornecendo apoio militar aos sauditas e seus parceiros de aliança. Bombas fabricadas pelos Estados Unidos foram usadas em ataques à população civil iemenita, segundo informações da CNN.
Segundo o Soufan Center, isto precisa ser revisto. “Objetivos como desestruturar a Al-Qaeda na Península Arábica precisam ser consideradas diante dos efeitos devastadores da guerra na população iemenita.”
Quais os efeitos do conflito para a população?
O Iêmen já tinha sérios problemas econômicos e sociais antes da guerra civil. “Corrupção, desemprego em alta, falta de água e uma grande dependência de alimentos importados fizeram do Iêmen um país empobrecido”, diz o professor americano.
A situação só piorou de 2015 em diante. De lá para cá, o PIB encolheu 65%, segundo o FMI. No ano passado, mais de 2 milhões de pessoas estavam fora de seus lares, de acordo com o Banco Mundial. Pelo menos 22 dos 29 milhões de habitantes do país dependem de assistência humanitária, segundo a Human Rights Watch. Uma epidemia de cólera já atingiu um milhão de pessoas.
“A situação tende a piorar”, diz McFarland. Tropas lideradas pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes tentam tomar o porto de Hodeidah, por onde entra a maior parte da ajuda humanitária para o Iêmen.
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Especialistas que trabalham no Escritório do Alto Comissário para Direitos Humanos das Nações Unidas apontam que os governos do Iêmen, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita podem ser considerados como responsáveis por crimes de guerra incluindo estupro, tortura, desaparecimento e “privação do direito à vida” nos mais de três anos e meio da guerra civil no Iêmen.
Um relatório, apresentado ao Conselho de Direitos Humanos no final de agosto, também sinaliza para possíveis crimes cometidos pelos houthis. “Ataques aéreos da coalizão liderada pelos sauditas atingiram alvos civis como áreas residenciais, mercados, funerais, casamentos, prisões, barcos civis e hospitais", informa o documento.
Segundo Kamel Jendoubi, coordenador dos especialistas que produziram o relatório, há poucas evidências de qualquer das partes envolvidas no conflito tenham tentado minimizar o número de mortes entre a população civil. De acordo com o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas, de março de 2015 a 23 de agosto, pelo menos 6,6 mil civis foram mortos e 10,5 mil foram feridos.
O fim do conflito está próximo?
Os especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo não são muito otimistas. O professor Márcio Scalércio, da PUC-Rio, disse que o conflito só vai acabar quando houver um vencedor.
“A situação só tende a piorar”, complementa Kelly McFarland, da Georgetown University. O motivo é a luta pelo porto estratégico de Hodeida, por onde entra três quartos da comida importada pelo Iêmen. A cidade também é fundamental para a entrada de combustíveis, remédios e outros produtos essenciais.
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A coalizão, liderada pela Arábia Saudita e pelos Emirados Árabes Unidos, lançou uma ofensiva para tomar Hodeida em junho na maior batalha do conflito, mas desistiu depois de poucos avanços para dar uma chance às negociações de paz.
Segundo a Reuters, os ataques à cidade foram retomados na segunda, e ganharam intensidade na quarta-feira da semana passada, depois de negociações de paz terem fracassado no início de setembro, em Genebra (Suíça), devido à ausência dos representantes do movimento houthi. Abdul Malik al-Houthi, um dos líderes do grupo, acusou a coalizão de bloquear a ida de sua equipe à Suíça para participar das conversações.
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