Ouça este conteúdo
Como é a vida na capital de um país que a imprensa internacional aponta incessantemente que será invadido a qualquer momento?
Enquanto sites estrangeiros noticiam que moradores nos arredores de Kiev treinam técnicas de sobrevivência, diante da crise de concentração de tropas russas na fronteira, o governo da Ucrânia diz que a rotina não mudou e pede que o Ocidente não alimente o pânico no país.
Para o professor de comunicação social e jornalista curitibano Ruben Holdorf, a administração do presidente Volodymyr Zelensky está mais perto da realidade. Ele mora há oito meses em Bucha, cidade localizada a 17 quilômetros de Kiev, e trabalha como professor, consultor e orientador convidado no Instituto Ucraniano de Humanidades.
Holdorf disse em entrevista à Gazeta do Povo que há apreensão na capital e cidades vizinhas com a possibilidade de que Moscou invada a Ucrânia, mas está longe de ser um medo paralisante e a vida segue normal.
“As gôndolas dos supermercados estão cheias, as prateleiras, está tudo funcionando normalmente na Ucrânia, bem diferente daquilo que está sendo dito, aquela tensão, medo. Eu vi uma série de entrevistas, devem ter entrevistado umas 50 pessoas e três falaram que estavam com medo. Logicamente, usaram essas três entrevistas na TV (risos). Mas, é claro, quem está mais perto da fronteira deve estar muito mais apreensivo do que quem está em Kiev”, afirmou Holdorf.
Em janeiro, Zelensky se irritou com a atitude do presidente americano, Joe Biden, de retirar diplomatas da embaixada em Kiev e criticou a cobertura da imprensa dos Estados Unidos sobre a crise no leste europeu.
“Temos tanques nas ruas? Não. Mas essa é a sensação se você não estiver aqui. A imagem criada pela mídia de que temos tropas nas estradas, temos mobilização, as pessoas estão saindo? Não é assim. Não precisamos desse pânico”, afirmou o presidente.
Na semana passada, o centro de informações para visitantes estrangeiros VisitUkraine.Today lançou a campanha “Mantenha a calma e visite a Ucrânia” para atrair turistas e negar que haja clima de pânico no país.
Para Holdorf, a imprensa internacional cobre de forma superficial a realidade ucraniana e muitas vezes desinforma.
Ele citou o exemplo da estocagem de alimentos que as famílias ucranianas fazem para o inverno, devido à dificuldade de sair para fazer compras em dias muito frios, o que gera aumentos de preços temporários – mas órgãos de imprensa estrangeiros noticiaram que a inflação seria resultado do temor de que a Rússia desencadeie uma ação militar contra o país.
Não que os ucranianos não desconfiem do vizinho: Holdorf destacou que o Exército local se estruturou e a população começou a comprar mais armas depois de 2014, quando Moscou anexou a província da Crimeia e apoiou separatistas russos que declararam duas repúblicas na região de Donbass, no leste do país.
Mas há outros fatores a que o Ocidente não dá tanta importância, segundo o professor, como os atentados domésticos contra Zelensky.
“Há muitos grupos que não aceitam a política atual do governo, a caça aos oligarcas [beneficiados com o ‘loteamento’ do país após o fim da União Soviética], uma limpeza no Judiciário, inclusive até o [Sergio] Moro andou falando que iria implantar o modelo do Zelensky de combate à corrupção. Ele tirou o presidente de uma das cortes mais importantes do país, de Kiev, por corrupção, que está em casa com tornozeleira eletrônica”, explicou.
Holdorf não acredita que uma invasão russa ocorra neste momento. “Talvez façam depois que ocorra outro cenário, que justifique a entrada para tentar dizer que vieram colocar ordem na casa, e aí ficariam por aqui para nunca mais sair”, justificou o professor.
“O segundo cenário para mim seria o mais perigoso: a entrada de Belarus [aliado russo]. Há um risco muito grande de se transformar isso aqui num jogo entre Rússia e Estados Unidos, mas usando outras peças e não as deles. E o terceiro cenário seria, sabe-se lá quem, alguém da Rússia, da CIA, da Otan ou interno mesmo desestabilizar e conseguir derrubar o governo ou colocar o país numa situação que leve a uma guerra civil”, elencou.
Por enquanto, a vida em Kiev e arredores segue sem mudanças bruscas de rotina. “Quer informar, vai para Donbass, não vem falar de Nova York”, ironizou Holdorf.