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 | John Jobby /Arquivo Gazeta do Povo
| Foto: John Jobby /Arquivo Gazeta do Povo

Opinião

Ideologia rege de economia a normas sociais

Dos kibutzim do deserto aos jovens soldados nas ruas de Haifa, Israel pode ser definido como uma nação ideológica. Só isso explica o fato de, num país que ama os Estados Unidos, a rede MacDonald’s não servir cheeseburgers. A cadeia se adapta à "kashrut", conjunto de normas que inclui a tradição de não misturar carne e derivados do leite na mesma refeição. É surpreendente observar a extensão do respeito a essa lei mesmo sem o temor da punição, quando muitas vezes, no Brasil, nem mesmo um simples sinal vermelho é obedecido.

A ideologia permeia a própria existência do Estado. Grande parte da população se mudou para lá por ter tido familiares mortos no Holocausto, de forma a ajudar o país a crescer e impedir que um genocídio se repita.

O clima de redenção em que o Estado foi criado, após a Segunda Guerra Mundial, é perpetuado em pleno deserto, em um "cinema de um filme só" instalado junto ao túmulo do primeiro premier, David Ben-Gurion, que mostra de maneira criativa os primórdios do país.

A necessidade de se defender faz com que a maior parte da população apoie o serviço militar obrigatório de 3 anos para homens e 2 para mulheres. A economia do país também se adequa a ele: bancos aproveitam para lançar fundos de poupança para "mimar o filho com muitos presentes quando estiver no Exército".

É comum empresas privadas se valerem da defesa do território como marketing. A montadora Better Place, que em breve deve lançar um carro elétrico em Israel e outros países, promove o produto em vídeo institucional que mostra como um dos benefícios do veículo o fato de o país deixar de depender de "regimes instáveis" – momento em que aparecem em cena camelos com poços de petróleo em chamas ao fundo.

Críticos de Israel podem tirar ao menos uma lição de marketing do deserto.

Helena Carnieri, repórter de Mundo

  • Muad Oudeh, líder de facção do Islã: críticas internas por ir contra a jihad
  • A vida nos kibutzim: menos ideologia, mais tecnologia
  • O jardim de infância do kibutz Mashabei Sadeh
  • Tanques de peixes de água salgada: tecnologia
  • Formatura de soldados, quando recebem uma arma e um Velho Testamento
  • A vida comunitária tem muitas regras e direitos
  • Carrinho que cada idoso ganha para se locomover
  • Não há brinquedos na escola, apenas objetos reciclados
  • Abrigo antibomba: comunidades já foram alvo de foguetes

A insistência do governo israelense em ampliar assentamentos considerados ilegais pela comunidade internacional em Jerusalém Orien­­tal e a resposta palestina com o lan­­çamento de foguetes escondem a existência de nichos pacíficos de judeus e palestinos no país. Falar em coexistência, porém, é ir longe demais.A cidade costeira de Haifa é citada como exemplo no discurso da coexistência e "vendida" como casa pacífica dos dois povos. Sim, ali judeus e palestinos circulam sem se fulminar nos olhos. Mas no bairro onde a vida comum seria mais intensa, Hadar, incrustado a meio caminho do cume do monte Carmelo, a coexistência se prova muito distante do que seria definido como integração pelos padrões brasileiros. Quem anda por lá percebe que há bares e restaurantes frequentados pacificamente por ambos, e organizações não governamentais que promovem atividades para integrar os dois povos, com destaque para crianças.Até aí, poderia ser uma cidade do Brasil. Porém, as escolas, cerne da formação do indivíduo, são separadas, e cada grupo (israelenses nativos, judeus russos, judeus ortodoxos, árabes) mora em um canto, ao estilo da Curitiba dos imigrantes da primeira metade do século passado.Se não bastasse a histórica disputa territorial, existem leis que impedem a aproximação dos dois povos, como a proibição a famílias mistas. Como só existe o matrimônio religioso e a lei rabínica impede a união de judeus com não judeus, cerca de 10% dos casamentos são feitos fora do país, com destaque para a ilha de Creta. A socióloga Yahel Ash Kurlander contou à Gazeta do Povo, com tom indignado, que preferiu não se casar oficialmente, por não concordar com o sistema. Para ela, cada um deve poder se unir a quem bem entender, independentemente da religião.Outro problema é o desrespeito ao direito de ir e vir. Enquanto Israel ergue muros e obriga palestinos a passar por postos de controle militar para sair de seus territórios, os judeus não podem entrar em cidades sob controle palestino. "Para mim, é proibido entrar nu­­ma cidade árabe porque eu estaria arriscando minha vida e a dos soldados que terão de entrar para me tirar", desabafou à reportagem a empresária israelense Paula Stern.

ExtremismoDepois de anos de negociação, por que a coexistência continua uma utopia? "O maior problema são os extremistas dos dois lados", explica Yali Amit, que mora em Haifa. "Não lembro quando o clima foi bom aqui", diz o fotógrafo de 33 anos.

A divisão entre as próprias facções e a ação de extremistas trava a diplomacia. Uma corrente dentro do Islã, os muçulmanos ahmadiyya, prega a existência pacífica e nega a jihad como tem sido propalada por líderes islâmicos. "Não há a palavra espada no Corão. O Islã não é Kadaffi e Osama", disse à reportagem Muad Oudeh, secretário-geral do grupo em Haifa. Mas essa corrente é criticada pelos muçulmanos tradicionais, que concordam que a jihad (guerra santa) significa na origem "esforço", mas pregam o direito de defesa quando há um ataque.

Sobre o extremismo judeu, basta lembrar que o premier Yitzhak Rabin, que assinou o acordo de paz de Oslo com Yasser Arafat em 1993, foi morto dois anos depois por um militante ortodoxo oposto às negociações.

O diretor de uma escola palestina Jalal Hassan garante que há, sim, coexistência entre diferentes povos no país: "entre criminosos".

Antes crucial, kibutz agora é estilo de vida

Fundamentais para o povoamento de Israel no século passado, os kibutzim representam hoje uma opção de vida comunitária, com menos cunho ideológico. As quase 300 vilas desse tipo que cortam o país, do deserto do Negev às colinas arborizadas do norte, foram cruciais na demarcação de território antes e após a fundação do Estado, em 1948.

Hoje, pouco mais de 100 mil pessoas, ou 2% da população israelense, vivem num kibutz. "O kibutz como ideia está morrendo. As pessoas estão mudando para lá pelo estilo de vida", opina a psicóloga de Tel Aviv Limore Racin.

São comunidades que reúnem muitos artistas, por exemplo, e pessoas que não se consideram materialistas.

Se os kibutzim foram responsáveis por impulsionar a agricultura de Israel, com isenção de impostos no passado, hoje a perda de rentabilidade no campo estimula o investimento em tecnologias e indústrias alternativas. No kibutz Mashabei Sadeh, próximo a Beer Sheva, um dos negócios é a criação de peixes de água salgada, num processo que usa a água imprópria para consumo humano e a recicla para diversas outras utilidades.

Mas a valorização do trabalho da terra foi mantida, e é expressa na pequena horta que as crianças do jardim de infância mantêm. Outro resquício ideológico aparece no quintal da escola, onde não há brinquedos. Ou melhor, brinquedos comprados. Os jogos são feitos com utensílios reciclados, que incluem um fogão encostado, panelas e chaleiras.

Outras características, antes muito valorizadas, foram alteradas. Impensável antigamente, hoje há diferença de salários em alguns kibutzim. Se as refeições eram todas comunitárias e feitas num refeitório, agora alguns mo­­radores coletam sua parte e levam para casa, ou cozinham só para a família. As grandes mesas são ocupadas parte do tempo por turistas, que encontram ali uma boa opção de hospedagem.

Vida regrada

As regras para entrar num kibutz continuam rigorosas. Antes de ser admitido, o candidato passa três anos sendo avaliado. Isso porque, depois que entra, recebe os mesmos direitos e responsabilidades que os demais – que incluem a posse de um cartão de crédito "corporativo".

Todos os gastos do morador são pagos, do nascimento à morte. Se um membro do kibutz é aceito em Harvard, a comunidade paga para que ele vá e se instale nos EUA.

Se resolver sair de vez, ganha apenas um pouco de dinheiro. Muitos culpam a pressão materialista da sociedade pelo esvaziamento dos kibutzim.

Mas questões pessoais e particulares contam, e muito. O educador Michel Kahn mo­­rou num kibutz durante sete anos, mas, quando a mulher alcançou um bom salário, passou a se incomodar em entregar tudo ao grupo. Apesar de gostar da vida comunitária, ele não conseguiu convencê-la a ficar e os dois partiram para uma vida "tradicional".

A ajudante de cozinha do Ma­­shabei Sadeh Ella Kohen nasceu ali mesmo em 1958. Nunca quis sair, conforme contou à reportagem. Mas, ultimamente, tem pensado nessa possibilidade. "Não nos damos mais tão bem. Não gostamos mais tanto uns dos outros."

* A jornalista fez um curso do Ministério de Relações Exteriores de Israel, em Haifa.

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