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Moradora na escadaria de um prédio no centro de Marselha, onde um relatório de 2015 mostrou que 40 mil moradias eram inseguras | ANDREA MANTOVANI / NYT
Moradora na escadaria de um prédio no centro de Marselha, onde um relatório de 2015 mostrou que 40 mil moradias eram inseguras| Foto: ANDREA MANTOVANI / NYT

O bombeiro vestindo capacete vermelho foi firme ao anunciar às famílias que esperaram ansiosas ao seu redor: "Certo, vamos interditar o prédio." Confusas e assustadas, subiram as escadas escuras e decadentes da edificação da rua Jean Roque, passando por paredes esburacadas e rachaduras tão profundas que seria possível enfiar um braço dentro. Após o comando, recolheram seus pertences e deixaram o edifício, pela última vez.

O prédio de apartamentos decrépito de cinco andares onde moravam, há muito abandonado pelas autoridades, fora considerado perigoso. Os líderes municipais de Marselha, tentando se defender após terem ignorado os alertas de especialistas, apressavam-se para responder a um protesto público após o colapso de dois prédios ter matado oito pessoas. 

Desde então, as autoridades já evacuaram 1.054 pessoas – número que só deve crescer – de 111 apartamentos deteriorados que se localizam no coração do antigo e sombrio porto mediterrâneo. No entanto, um relatório de 2015, elaborado a mando do ministro francês da Habitação, denunciou que 40.000 moradias em Marselha não eram seguras – o que representa 10 por cento de todos os prédios temerários da França e afeta 100.000 habitantes da cidade. 

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Marselha, a segunda maior cidade francesa e uma das mais pobres da Europa, enfrenta uma crise de moradia que, vista mais de perto, é uma crise de pobreza, já que mais de um quarto da população é oficialmente declarada pobre. Muitos questionam o motivo de as autoridades terem negligenciado por tanto tempo uma situação tão urgente e o que a pobreza persistente de Marselha diz sobre a indiferença em relação "à outra França" – em parte imigrante e pobre –, cujo declínio vem de muito antes das mudanças pró-mercado estabelecidas pelo presidente Emmanuel Macron e que, muito provavelmente, ameaça perdurar mais do que elas.

Mael Camberlein, morador do número 65 da Rue D’Aubagne, um dos edifícios que colapsaramANDREA MANTOVANI / NYT

Durante protesto, cartazes mostram o rosto de pessoas que perderam suas vidas na queda de um edifícioANDREA MANTOVANI / NYT

Enquanto a cidade investiu milhões em instalações esportivas e museus deslumbrantes para turistas, muito pouco tem sido feito para revitalizar centenas de prédios no centro da cidade, alguns do século 18 ou até mais antigos, que abrigam os menos favorecidos. As inspeções têm sido caóticas e superficiais, relatórios alarmantes foram ignorados e não há funcionários suficientes para dar conta dos esforços necessários. 

Segundo informações de um grupo ativista, apesar de o relatório de 2015 ter denunciado que 40.000 prédios não eram seguros, apenas uma pequena fração foi oficialmente declarada insegura pela cidade em todo o ano de 2016. 

Bennis Aberrazk em seu apartamento na Rue Jean Roque antes de ser evacuadoANDREA MANTOVANI / NYT

Bombeiros supervisionam evacuação em um edifício na Rue Jean RoqueANDREA MANTOVANI / NYT

No dia 18 de outubro, duas semanas e meia antes de os prédios da rua d’Aubagne terem desabado, um especialista enviado pela prefeitura declarou que o primeiro andar do número 65 corria risco; o resto do prédio, não.

Aqueles que foram mortos – incluindo uma imigrante mãe de oito crianças, um estudante, um pintor e um africano desempregado e sem documentação – refletem o abismo entre os que têm moradia, água limpa, oportunidades de educação e trabalho e o resto, mesmo em um país com uma extensa rede de segurança social. 

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Em resposta, milhares de pessoas lotaram as ruas da cidade para protestar contra a negligência das autoridades. "Gaudin, assassino! A justiça da rua vai condenar você", berravam 10.000 manifestantes contra o poderoso e longevo prefeito da cidade, Jean-Claude Gaudin, em uma manifestação barulhenta diante do prédio da prefeitura de estilo barroco, com vista para o mar. 

Após uma das manifestações, Gaudin declarou à mídia local: "Não vemos nenhuma falha em particular de nossa parte que possa ser criticada", mas as autoridades locais têm economizado em suas respostas. 

Stephanie Rose, uma jovem mãe de duas crianças, pede para seus filhos usarem tênis em dias de chuva porque a água entra no apartamentoANDREA MANTOVANI / NYT

As três filhas de Saida Ouaheb, à direita, têm medo de ficar em seu apartamento de dois cômodosANDREA MANTOVANI / NYT

Os habitantes de Marselha, tanto os bem-vestidos quanto os maltrapilhos, reúnem-se dia após dia para ir ao memorial temporário de flores e velas construído perto do local do desastre. "Não foi a chuva!" – referência irônica à explicação inicial dada pela prefeitura e que já virou um ícone de protesto – aparece rabiscado na parede. "Quem morreu lá? Apenas os pobres. E isso ainda não acabou", revoltou-se Rabah Ramdani, proprietária de uma loja, que foi prestar homenagem às vítimas. 

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Deslumbrante e em tons pastel, Marselha concentra as patologias urbanas da era pós-industrial ou, como colocaria o sociólogo Michel Peraldi, "algo como uma Detroit francesa". Ele completa dizendo que a cidade nunca se recuperou de dois impactos: o da desindustrialização e o da descolonização. As indústrias que processavam matérias-primas baratas não existem mais e nem as colônias que as forneciam. O maior empregador nos dias de hoje é a administração do hospital público e o desemprego é 50 por cento mais alto do que a média nacional. As ondas migratórias começaram nos anos 1950, vindas do norte da África, "Há três gerações de desempregados. Nunca houve uma política clara para reintegrar essas classes à sociedade", esclareceu Peraldi. 

Encontro de um grupo organizado para ajudar as vítimas após quedas de edifíciosANDREA MANTOVANI / NYT

Memorial improvisado com flores e velas próximo ao local do desastreANDREA MANTOVANI / NYT

Dos dois prédios que desabaram na rua d’Aubagne, o de número 63 estava vazio, cercado por placas de madeira e sem boa parte do telhado. Além disso, havia sido desapropriado pela prefeitura. Acredita-se que o colapso dessa estrutura, como num castelo de cartas, tenha levado abaixo o já fraco e inabitado prédio número 65, fragilmente suportado pelo número 63. "Isso revelou um estado de total decadência e profundo descaso da parte dos representantes eleitos. É uma catástrofe política porque, há 23 anos, a prefeitura tem permitido que a vizinhança morra", desabafou Patrick Lacoste, líder de um grupo ativista, o Centro da Cidade para Todos. 

Visite qualquer prédio em Noailles, tradicional bairro de comércio de alimentos há gerações, e verá que a escadaria se inclina para baixo de forma vertiginosa. É aconselhável segurar-se no corrimão. "Quando o vizinho sobe as escadas, o lugar todo treme", disse Khedidja Dhamani, uma mulher de meia-idade que mora na rua d’Aubagne mais para baixo de onde os prédios caíram. Há buracos no teto que, na maioria das vezes, deixam à mostra vigas de madeira já podres. Na cozinha de Dhamani, a água da banheira do vizinho corria através de uma grande rachadura. É também comum ver vigas de aço enferrujadas apoiadas nas escadas. Stephanie Rose, jovem mãe de dois filhos, pede a eles que sempre calcem os tênis quando chove, pois a água entra no apartamento. 

Em Marselha, onde mais de um quarto da população é oficialmente pobre, a grande crise de moradia é apenas o sintoma mais visível da pobreza crônicaANDREA MANTOVANI / NYT

Perto dali, na rua de l’Arc, o vizinho de baixo de Saida Ouaheb pede que ela não use a máquina de lavar roupas porque faz com que o teto balance. As três filhas pequenas de Ouaheb têm medo de ficar no pequeno apartamento de dois quartos – a de nove anos se recusou a deixar a escola um dia. Ouaheb trabalha como faxineira em um restaurante. O aluguel mensal de 640 euros (cerca de 2.800 reais) é quase todo subsidiado pelo estado. O marido, marroquino, não fala francês, não tem documentação e não trabalha. "Não estamos dormindo bem aqui, tenho medo, gostaria de ir embora", confessou Ouaheb. 

Nas manifestações, imigrantes residentes das favelas do centro eram minoria diante da multidão de burgueses brancos residentes de Marselha, a maioria não afetada pelas condições impiedosas de habitação, mas que, mesmo assim, expressaram vergonha pelo desastre fatal. "É inacreditável que uma coisa desse tipo tenha acontecido aqui, na França", afirmou Elise Sut, musicista que participou de uma das manifestações. 

 

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