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Nesta terça-feira (19), a guerra na Ucrânia completará mil dias sob o impacto de uma notícia do fim de semana: a autorização americana para que Kiev utilize armas de longo alcance fornecidas pelos Estados Unidos para ataques a alvos dentro do território da Rússia.
Segundo informações da imprensa americana, tal autorização está limitada a ações na região fronteiriça de Kursk, onde a Ucrânia iniciou em agosto uma contraofensiva. Porém, desde setembro, Kiev vem perdendo terreno conquistado na região, e o recente anúncio de que 10 mil militares norte-coreanos foram enviados para a área aumentou a preocupação.
A liberação do uso de armas americanas de longo alcance em Kursk é uma resposta direta a essas dificuldades, mas os analistas concordam que a medida do governo Joe Biden, por si só, é insuficiente para “virar” a guerra.
“A decisão vem tarde, e como outras decisões nesse sentido, pode ser tarde demais para mudar substancialmente o rumo do conflito”, disse Michael Kofman, membro do think tank Carnegie Endowment for International Peace, à agência Reuters.
“Ataques de longo alcance sempre foram [apenas] uma peça do quebra-cabeça, e foram excessivamente superestimados nesta guerra”, acrescentou Kofman.
Muitos especialistas avaliam que a autorização, nos meses finais da gestão Biden, tem um cálculo político que leva em conta o novo presidente americano, Donald Trump.
O republicano, como muitos colegas de partido, criticou o envio de ajuda americana à Ucrânia e tem afirmado que apresentará uma solução para acabar com a guerra antes da sua posse, em 20 de janeiro.
Em setembro, durante a campanha, ele se encontrou em Nova York com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e prometeu um acordo que “seja bom para ambos os lados”, citando como trunfo seu “relacionamento muito bom” com o ditador russo, Vladimir Putin.
Não se sabe qual acordo Trump vai propor, mas, para o coronel da reserva e analista militar Paulo Roberto da Silva Gomes Filho, colunista da Gazeta do Povo, a ideia de Biden e Zelensky parece ser criar um cenário em que o republicano não terá como cortar a ajuda à Ucrânia.
“Ele não vai querer que pareça que a Rússia não cedeu nada. A Ucrânia vai tentar se manter em Kursk até a posse do Trump, porque quando ele assumir e se eventualmente quiser congelar os combates como estão, a Rússia não vai admitir que isso aconteça com uma parte do seu território ocupada. Dessa forma, talvez o Trump não vá ter como abandonar a Ucrânia, porque a Rússia não vai ter cedido nada”, explicou.
Tanto Ucrânia quanto Rússia têm afirmado que só admitirão negociações se não houver tropas do outro lado nos seus territórios.
“Como ele [Trump] vai obrigar os ucranianos a congelarem o combate com os russos mantendo os territórios ucranianos ocupados, se a Rússia não admite a Ucrânia manter os territórios russos que ocupou? A minha impressão é de que esse é o cálculo dos presidentes Biden e Zelensky”, disse Gomes Filho.
Ou seja: para o especialista, a Ucrânia conta com uma recusa de Putin em negociar para ter alguma esperança de que Trump mantenha o apoio dos Estados Unidos e dessa forma Kiev possa continuar sonhando em recuperar pelo menos parte do seu território invadido.
Ou, ao menos, negociar em condições menos desfavoráveis – conversas que, como dito anteriormente, não têm por ora perspectiva de terem início.
Ameaças ao Ocidente: Rússia não atacou OTAN antes, apesar desta ter cruzado linhas vermelhas
A exemplo do que ocorreu em momentos anteriores da guerra, o Kremlin fez ameaças ao Ocidente devido à decisão americana sobre as armas de longo alcance.
Porém, Gomes Filho não acredita que haverá uma escalada em razão da medida dos Estados Unidos – como ataques diretos a alvos da OTAN, por exemplo –, porque em outros momentos o Ocidente já ultrapassou linhas vermelhas estabelecidas por Moscou (como envio de tanques, mísseis e caças F-16 à Ucrânia) e não sofreu ataques russos.
“A Rússia não tem nenhum interesse em escalar essa guerra e atacar a OTAN seria chamá-la para o conflito, os russos não querem isso de maneira nenhuma”, argumentou.
“Foram várias as linhas vermelhas que foram seguidamente ignoradas pelo Ocidente. Essa vai ser mais uma delas, ainda mais que é uma clara resposta à presença das tropas da Coreia do Norte na região de Kursk. Ou seja, quem escalou [agora], quem cruzou uma linha vermelha, recebeu tropas estrangeiras para fazer apoio ao seu combate, foi a própria Rússia”, disse Gomes Filho.