A Espanha vive um cenário desolador e inimaginável pouco tempo atrás. Neste domingo, o país registrou o maior número de mortes em um único dia: foram 838, o que elevou o total de fatalidades a 6.528. Isso representa um aumento de 14,7% em relação ao dia anterior, o que significa que as mortes diárias estão aumentando, mas em um ritmo mais lento.
Mais de 78 mil casos foram confirmados até agora - 6.500 apenas neste domingo. Esses número colocam os espanhóis, ao lado dos italianos, no epicentro da pandemia global.
A Covid-19 cobrou o preço mais alto da capital Madri, que concentra 40% dos casos do país.
Famosa por seus bares, tapas e terraços ao ar livre, Madri virou uma cidade fantasma, militarizada após duas semanas de confinamento absoluto decretado pelo governo do primeiro-ministro Pedro Sánchez. Caminhar sem uma boa razão pode render multa de até 3 mil euros (R$ 17 mil).
O isolamento será ainda mais rígido a partir de segunda-feira. Sánchez, informou que neste domingo será aprovada a limitação total de movimento, à exceção dos trabalhadores de atividades essenciais. A medida estará em vigor de segunda (30) até a quarta-feira da semana que vem (9 de abril), segundo informou o jornal El País.
Apenas as empresas que operam para fornecer os serviços essenciais poderão operar até 9 de abril, o que inclui atividades relacionadas ao setor primário, como agricultura, pesca e produtos alimentícios, fabricação de roupas de trabalho, produtos farmacêuticos e transporte e distribuição de todos os produtos considerados básicos.
A região mais atingida
As imagens de Madri dão o tom da crise. Em uma ação, a Guarda Civil ocupou uma fábrica de máscaras e apreendeu 150 mil para levá-las a hospitais. Em outra caminhões do Exército circulavam em bairros próximos ao centro com um alto-falante exigindo que as pessoas ficassem em casa.
O drama da capital se concentrar no sistema de saúde, que não pode absorver o número avassalador de casos graves decorrentes do coronavírus. Especialistas garantem que o pior ainda está por vir.
O médico Javier Padilla disse ao Estado de S. Paulo que o trabalho dos profissionais de saúde pública está no limite da capacidade, com infraestrutura sobrecarregada e recursos cada vez mais limitados em razão dos cortes nos orçamento e das privatizações no setor. Segundo ele, existem hoje 1,3 mil trabalhadores a menos do que havia em 2009, período em que a população de Madri aumentou em meio milhão de habitantes.
“Teríamos de retornar ao número de profissionais por habitante que tínhamos antes da crise”, afirmou Padilla. “Na Espanha, entre 2008 e 2012, tivemos um corte de 20% nos gastos com saúde. A região de Madri foi a que mais privatizou, o que causou uma perda da capacidade de controle do serviço de saúde”, referindo-se ao governo do conservador Partido Popular (PP), que governa Madri há 25 anos.
Mas o governo de Sánchez, um socialista, também não está imune às críticas. A oposição acusa o premiê de ter decretado estado de emergência tarde demais, no dia 14. Na semana anterior, no sábado, 60 mil pessoas lotaram o estádio Wanda Metropolitano para ver a partida entre Atlético de Madrid e Sevilha.
No dia seguinte, quando o vírus já circulava, 120 mil pessoas saíram às ruas de Madri para marcar o Dia Internacional da Mulher. Além disso, os conservadores argumentam que os cortes feitos pelo PP foram replicados pelo governo socialista, em nível nacional, nos últimos anos.
A pandemia na Espanha, porém, não mexe apenas com a classe política. O surto vem afetando a saúde mental de médicos e enfermeiros, que lidam diariamente com hospitais superlotados em situação precária e com poucos recursos.
Na semana passada, uma das associações médicas mais importantes da Espanha denunciou a falta de material de segurança, principalmente de máscaras e de equipamentos de proteção individual. A escassez vem aumentando a contaminação de profissionais da saúde, como foi o caso de Andrea Miján, de 34 anos, médica de uma clínica particular de Madri.
“Nos consultórios, já não há máscaras, nem sabão. Tive de trazer sabão de casa e exigir álcool em gel. Quando pedi as máscaras, me responderam que estavam trancadas”, disse Miján, que está há duas semanas confinada. Ela acredita que foi infectada no atendimento de um homem de 70 anos. Em casa, ela passou o vírus para a mãe, que sofre crises de ansiedade em razão do confinamento.
Economia da capital
A crise mudou a capital da Espanha. O Ifema, gigantesco espaço para feiras no nordeste de Madri, está ocupado pelo Exército, que montou um hospital de campanha com 5,5 mil leitos. Por decisão do governo, vários hotéis - vazios em razão da crise - abriram as portas para receber doentes e amenizar a falta de vagas em hospitais. A Associação Empresarial Hoteleira ofereceu 9 mil camas, incluindo em estabelecimentos de alto padrão, como o Marriot.
Outro impacto visível da pandemia na capital espanhola é econômico. Na semana passada, o Idealista, site especializado em encontrar apartamentos, em um único dia, ganhou 250 novas unidades de proprietários madrilenhos que fugiram do aluguel por temporada, mercado que entrou em colapso na cidade.
A falta de turistas e o confinamento compulsório dos espanhóis são responsáveis por acontecimentos sem precedentes todos os dias. No dia 17, pela primeira vez, o emblemático trem-bala que liga Madri a Barcelona fez uma viagem com todos os assentos vazios. O Congresso da Espanha também está às moscas, com sessões que contam com a presença de apenas 15 deputados, de um total de 350.
A crise, que já causou uma contração de 1% do PIB, segundo estimativas do governo, também vem criando novos laços de solidariedade. Espontaneamente, surgiu na Espanha um movimento que leva cartas de apoio a médicos e pacientes que não podem ver seus parentes em razão do isolamento. Em poucos dias, foram enviadas 35 mil cartas.
Também se tornou comum em Madri - assim como na Itália - a socialização nas varandas dos apartamentos. Em breves caminhadas pelas ruas desertas da capital é possível escutar música, concertos improvisados e até bingo entre os vizinhos.
Os médicos acreditam que o pico da pandemia na Espanha será atingido pouco antes da Páscoa. Enquanto isso, os 6 milhões de habitantes da capital aguardam ansiosamente a volta às ruas e aos terraços para aproveitar o sol da primavera.
Muitos madrilenhos encaram a pandemia como um novo cerco. O último havia sido em 1939, quando a cidade foi tomada pelas tropas de Francisco Franco, que derrubou a Segunda República e inaugurou uma longa ditadura. Oito décadas depois, a capital volta a ser sitiada, em clima de guerra, mas contra um inimigo invisível que pode estar em qualquer lugar, a qualquer momento.
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