Favela na França, sob a Pont des Poissonniers, em Paris, em 18 de março de 2017| Foto: André FeigelesWikimedia

Em novembro do ano passado, a remoção de uma favela nos arrabaldes de Paris atraiu atenção internacional para um problema antigo que permanece sem solução na França: a persistência das “bidonvilles” (“cidades de lata”) no cotidiano das principais cidades do país. Só aquela, situada no Boulevard Ney parisiense, já estava sendo desmontada pela quarta vez em um intervalo de apenas três anos. 

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O repetido insucesso das autoridades em afastar os moradores pobres da área era um exemplo claro da questão que atormenta o governo: sem alternativas eficientes para realocar a população, as improváveis favelas da França sempre voltam – às vezes, no mesmo local ou a poucos metros de onde haviam sido erguidas originalmente. Hoje, mais de 16 mil pessoas vivem em centenas de bidonvilles espalhadas pelo mapa francês. 

Suas localizações são, com frequência, ocultadas do cotidiano da cidade. A bidonville do Boulevard Ney, por exemplo, tem sido construída e desmanchada em uma espécie de trincheira ferroviária entre as duas mãos da rua, cuja visão é geralmente acobertada pelas muretas e cercas-vivas que adornam a avenida. Ela foi erguida sobre os trilhos de uma antiga via férrea hoje fora de uso. Seus habitantes, na maioria da etnia rom (ciganos originários da Romênia), conviviam com sujeira, falta de infraestrutura básica, ratos e o preconceito da população local. 

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Problema antigo 

Como ocorreu em outros lugares do mundo, as favelas francesas começaram a se tornar um problema cotidiano em função da rápida urbanização que se seguiu ao final da Segunda Guerra Mundial. A mecanização nos campos acelerou o êxodo rural e, no caso da França, esse movimento foi acompanhado pelo afluxo de imigrantes vindos das colônias mantidas pelo país no norte africano. 

Em pouco tempo, a população pobre das grandes cidades explodiu. Na metade dos anos 60, o governo francês estimava que mais de 100 mil pessoas vivessem em bidonvilles, uma precariedade que afetava particularmente a população magrebina que havia se radicado no país: cerca de 43% dos argelinos na França vivia então em favelas, chamadas por eles de “chaâba”. 

A pobreza daqueles vindos de fora e os reflexos da guerra contra a Argélia, que obteve sua independência em 1962, ajudaram a aumentar as pressões da sociedade francesa por uma solução – tanto para o que sentiam ser um excesso de estrangeiros entrando no país quanto para as favelas propriamente ditas.  

“A crise dos anos 70 põe um fim abrupto ao influxo de trabalhadores. A política imigratória, agora, passa a encorajar o retorno ao país de origem. De um agente do crescimento, o imigrante se torna o indesejável que traz o desemprego”, escreve François Legris em um estudo sobre o maior bidonville desse período, em Nanterre, que sozinho chegou a ter 14 mil habitantes. 

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“Ao mesmo tempo, o estatuto do imigrante varia ao sabor da conjuntura após 1962. Até 1968, a obtenção de um carnê de residência é automática. Em 1972, passa a ser necessário a comprovação de emprego na França. Após 1982, o imigrante se torna o Estrangeiro”, argumenta Legris. 

Tragédia precipitou erradicação nos anos 70 

Em meados dos anos 60, os bidonvilles originais da França já pautavam muitos debates políticos na Assembleia Nacional. Uma primeira legislação tentando reabsorver a população pobre do país nos centros urbanos, a lei Debré, foi aprovada em 1964, mas seria uma tragédia ocorrida seis anos mais tarde que faria o governo arregaçar de vez as mangas para mudar a situação. 

Na noite de 1º de janeiro de 1970, cinco imigrantes africanos morreram asfixiados em um galpão em Aubervilliers, nos arrabaldes de Paris, onde se abrigavam do frio invernal. Cerca de 50 pessoas haviam se refugiado no local, sem eletricidade, onde fizeram aquecedores improvisados e fecharam as janelas – a pouca circulação de ar se revelou fatal. 

Não era a primeira vez que algo assim acontecia: no passado, já havia ocorrido mortes por frio ou por incêndio em outras bidonvilles. Mas, na França efervescente pós-Maio de 68, o drama social dos imigrantes calou mais fundo do que em outros momentos. A atenção dada pela imprensa ao caso não tinha precedentes, e as manchetes comparavam as condições de vida dos africanos que tentavam a sorte na França àquelas dos antigos navios negreiros, usados no tráfico transatlântico de pessoas escravizadas. 

O governo reagiu de imediato. O primeiro-ministro Jacques Chaban-Delmas visitou pessoalmente um bidonville em Aubervilliers. “Eu testemunhei condições de existência insuportáveis que, no entanto, são suportadas por aqueles vitimados por elas”, declarou. Em julho de 1970, foi aprovada a chamada lei Vivien, que facilitou a expropriação de prédios considerados “insalubres”, obrigando proprietários a melhorar as condições de habitação dos imigrantes ou correr o risco de perder o imóvel e ainda arcar com os custos de realocação. 

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Ao mesmo tempo, para englobar também aqueles que nem nesses locais precários conseguiam morar e literalmente habitavam casas “de lata”, grandes projetos de moradia popular foram levados a cabo em cidades-dormitório. Trabalhadores pobres foram transferidos gradativamente e, por volta de 1976, os antigos bidonvilles foram considerados “erradicados” na França. 

Um retorno diferente  

O problema, porém, não havia encontrado uma solução definitiva. A partir dos anos 90, novas favelas começaram a aparecer na paisagem francesa. Menores, com outra origem geográfica, mas mantendo em comum a precariedade das condições de vida das décadas anteriores – estima-se que 88% dos bidonvilles da França não têm eletricidade e 77% não contam com água corrente. Cerca de 58% são considerados “perigosos” pelo governo, em função da proximidade de autoestradas e riscos de atropelamento. 

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No último recenseamento feito nacionalmente, em abril deste ano, foram contadas 16.084 pessoas vivendo em bidonvilles espalhadas por todo o país. Se a população absoluta tem permanecido relativamente estável (oscilando entre 15 mil e 19 mil dependendo do momento), as favelas estão se tornando cada vez mais espalhadas: mesmo quando a população cai, elas se multiplicam – nos últimos quatro anos, o total de bidonvilles saltou de 429 para 571.  

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Hoje, embora ainda haja africanos, a população majoritária nas favelas vem de dentro da própria Europa – em geral, ciganos oriundos de países como a Romênia, Bulgária e Ucrânia, particularmente após o fim do bloco socialista e a ampliação da União Europeia, facilitando o trânsito de cidadãos do Leste Europeu para as nações ocidentais. 

Pouco antes de o bidonville do Boulevard Ney ser demolido pela quarta vez em três anos em Paris, no final de 2017, seus habitantes redigiram uma carta em romeno pedindo paciência das autoridades:

Queremos permanecer aqui durante o inverno porque temos crianças”, dizia a carta. “Por favor, deixem-nos ficar aqui até março-abril, pois não temos para onde ir. Estamos empenhados em manter a bidonville limpa, colocando extintores de incêndio... Nós temos muitas crianças, e estamos empenhados em tomar as medidas para matriculá-las na escola. Algumas já estão matriculadas e vão bem.

O apelo não impediu a remoção. No entanto, sem uma solução definitiva para o problema da falta de alojamento, grande parte das famílias volta a viver em péssimas condições pouco tempo depois da demolição – o que leva ao reaparecimento das favelas, com frequência em locais próximos a onde estavam originalmente. 

Política atual é um fracasso  

As organizações de defesa da população rom, como a Romeurope, têm insistido na tecla de que as remoções forçadas são ruins para os dois lados, pois não erradicam os bidonvilles nem oferecem soluções aos imigrantes. Segundo a Romeurope, cerca de 60% dos habitantes de bidonvilles já foram removidos alguma vez e imediatamente se estabeleceram em uma nova favela – e cada expulsão custa aos cofres públicos cerca de 1,3 mil euros por pessoa, valor que “seria mais bem investido em inserção e realocação”, argumenta a organização. 

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Em janeiro deste ano, em uma circular assinada por oito ministérios, o governo francês reconheceu o insucesso da política atual, discutindo as diretrizes para um novo projeto de redução das favelas que seja “humano”, tenha “respeito pelos direitos” mas também consiga ser “efetivo”. O caminho, apontam especialistas, é investir ainda mais em programas de integração da população das bidonvilles contemporâneas. 

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No nordeste francês, a cidade de Estrasburgo oferece o exemplo que, com aprimoramentos, agora se quer implementar nacionalmente: mais do que a simples demolição das favelas, o projeto de redução buscou promover a matrícula dos jovens em escolas e universidades, além de facilitar a entrada dos chefes de família no mercado de trabalho. Desde 2013, enquanto as bidonvilles não pararam de crescer no país, a população favelada de Estrasburgo despencou de 424 pessoas para apenas oito.